A questão da "democracia" está no coração do debate sobre "a mundialização". E parece essencial compreender bem as ligações entre privatização desta (na forma da globalização econômica e financeira) e privatização daquela (nas formas rivais da "democracia americana" e das "democracias européias").
De um lado da mesa do debate, os governos ocidentais, os organismos multilaterais e as empresas internacionais utilizam "a democracia" como argumento de venda, ou até mesmo como principal objetivo da "mundialização" reduzida ao seu fenômeno econômico contemporâneo, a globalização industrial e financeira, produtiva e mercantil. Esta última, ignorando ou transgredindo as fronteiras normativas do passado (geográficas, jurídicas, monetárias...), igualando os custos de produção e de consumo, harmonizando as condições de vida, facilitando as transferências e as trocas, difundindo mais depressa os conhecimentos e as ferramentas, teria também a virtude de estender o paradigma democrático ao conjunto do Planeta. Por um lado, "a democracia" como modelo positivo seria melhor conhecida e reproduzida no mundo inteiro. Por outro lado, a melhoria do meio ambiente econômico e social, suposto efeito da globalização, levaria a uma melhoria das condições e das práticas democráticas. Desse modo, a globalização estaria, como o Sr. Jourdain, personagem de Molière em O burguês fidalgo, fazendo democracia inadvertidamente.
Finalmente, fortalecidos por esta convicção sempre reafirmada, os governos democráticos ocidentais condicionam de agora em diante o acesso ao paraíso do livre-mercado à satisfação de uma "cláusula democrática", de conteúdo elaborado sob medida. Ora, como com a futura Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e sob o impulso do Canadá e dos Estados-Unidos, essa cláusula subordina a entrada de um futuro membro (o Haiti) à democratização imediata e controlada do seu regime. Ora, nos casos do FMI e do Banco Mundial, é a concessão de financiamentos estruturais ou conjunturais que pode ser submetida à existência ou à promessa de um melhor cenário democrático. Assim, um Estado não pode usufruir dos benefícios econômicos da democracia a longo prazo, se não fornecer garantias democráticas a curto prazo.
Do outro lado da mesa, os críticos dessa visão idílica da futura "democracia mundial" denunciam os recentes resultados efetivos da globalização econômica. Resultados que eles estimam desastrosos, não apenas num plano social, mas também em relação à evolução dos regimes e práticas democráticas. Assim, países do sudeste asiático, tais como Singapura, que conheceram um crescimento econômico impressionante nas últimas duas décadas, "globalizando-se" de modo "exemplar", teriam conseguido isso, em parte, em detrimento de um progresso comparável no plano democrático. Assim, muitos países latino-americanos, que os responsáveis políticos norte-americanos gostam de lembrar que saíram da era dos golpes de Estado e das ditaduras, continuam sendo "democracias" muito frágeis (precisamente diante das novas formas de instabilidade provocadas pela globalização) que dissimulam mal seu caráter profundamente oligárquico. Desse modo, outros países da Europa do Leste, cuja "rápida democratização" era esperada após o desmantelamento da União Soviética, demonstram sinais de evolução contraditórios: freqüentemente, os "progressos" de um dia de euforia eleitoral são rapidamente apagados pela volta das "tentações do passado"...
Por outro lado, além dos efeitos inventariados até agora, da vaga globalizadora das duas últimas décadas, aqueles que continuam céticos em relação às suas virtudes democráticas estimam que o pior ainda está por vir. De fato, "a mundialização" reduzida à forma econômico-financeira da "globalização" não poderia ser compreendida apenas como "um processo" ou "um fato" que se deveria contentar de aceitar, e de conseqüências difíceis de controlar num âmbito democrático. Ao contrário, a globalização traria consigo um projeto redutor de democracia ou, até mesmo, claramente "anti-democrático". Devido à limitação que ele infringe à expressão das culturas e nações minoritárias, pelo desenvolvimento das práticas oligárquicas de exercício e de partilha dos poderes que ele favoriza, fraca representatividade das elites que o sustentam e sua tentação para invalidar as formas de participação política incontroláveis da "sociedade civil", esse projeto de "democracia mundial" seria baseado numa ideologia profundamente antidemocrática. Nada menos, finalmente, do que um projeto de privatização do mundo.
Uma privatização que começaria pelos critérios, pelas práticas e pelos objetivos da "democracia" entendida como significado unívoco. É a idéia de que o modelo democrático americano-europeu dominante poderia ser difundido no mundo inteiro do mesmo modo como os blockbusters hollywoodianos ou as latinhas de Coca-Cola, e por meios comerciais semelhantes. É a idéia de que entre comércio, livre-comércio e democracia, haveria, não apenas pontes, mas também relações de causalidade identificáveis e reprodutíveis. A privatização mundial da democracia seria esse movimento por meio do qual, passando pelos caminhos do comércio, um pequeno número de dirigentes públicos e privados estimam ter o direito de impor ao mundo "uma certa idéia da democracia", porque ela seria "a melhor para todos" - e, é claro, para o próprio grupo reduzido. "Tudo o que é bom para a General Motors...": conhecemos o resto do argumento.
A última das OPC (1), a consagração de tantos esforços, o coroamento e a verdade de tal processo, seria portanto a OPC sobre "a democracia"...
A menos que ela já tenha acontecido?
(1) OPC: Ofertas Públicas de Compra em Bolsa de Valores.
(Outros artigos sobre esta mesma problemática e redigidos pelo mesmo autor estão disponíveis em espanhol neste site: Comercio de la democracia, democracia del Comercio)