Um mundo sem Estado seria mais tedioso que um parque de Davos com casais fresteando um sol suíço. Não teríamos ACM, Jáder Barbalho, Brizola, a recontagem de votos com ábaco nos Estados Unidos. Ficaríamos com as fofocas privadas do oitavo casamento do Fábio Júnior e os segredos do No Limite.
Um mundo sem Estado teria sonegado César, Alexandre, Maquiavel, Napoleão, Lênin, Roosevelt, De Gaulle, João XXIII. Sem Estado, não ficaríamos sabendo que a mulher do Eurico Miranda tem CPF duplo, não ouviríamos as fitas com as conversas da privatização da Telebrás, e Fernando Henrique poderia ser um sociólogo entregue ao oitavo tomo da teoria da dependência nas relações interpessoais.
Sem Estado-nação, não teríamos Saddam, e sem Saddam não teríamos em quem mirar. Sem o Estado do keynesianismo bélico, imagine, não teríamos nem a Internet. O mundo perderia a graça. Lula não faria excursões a Cuba. Não haveria os cronistas do mundanismo de Brasília, só os da Ilha de Caras. Mesmo que não se encontrasse outro motivo mais nobre, já seria uma boa justificativa lembrar que a ameaça do fim do Estado carrega um potencial de tédio arrasador. E dizer que o neoliberalismo brinca com o mesmo brinquedo de Marx, e que isso vai, volta e chega agora ao Fórum Social Mundial em Porto Alegre, agora de mão com a globalização.
O fórum será um evento contra a globalização, a mesma que Marta Suplicy, que estará aqui, não considera inimiga? É contra o pit bull ou contra o pit bull solto na praia? O manifesto do FSM diz que será formado aqui "um arquipélago planetário de resistência à globalizaçao neoliberal". Existiria porta de entrada para uma globalização não-liberal? Um convidado, incluído na primeira lista de presenças mas que não vem, o lingüista norte-americano Noham Chomsky, simplifica tudo com singeleza. O problema pode ser o pit bull solto na praia.
Chomsky especializou-se em desmontar blefes. Segue o rumo que levou o cientista político brasileiro José Luís Fiori a descobrir que "nenhuma burguesia no mundo jamais teve nenhum compromisso monogâmico com o liberalismo ideológico". O liberalismo sobreviveu como retórica sob a saia do Estado, da proteção, dos conchavos, subsídios, privilégios. Chomsky apurou isto: "A competição oligopolista e a interação estratégica entre as empresas e os governos, mais do que a mão invisível das forças do mercado, condicionam hoje a vantagem competitiva e a divisão internacional do trabalho nas indústrias de alta tecnologia".
O texto entre aspas não é de Chomsky, nem de um discurso que poderia ser lido no fórum. Saiu num relatório de 1992 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). É do americano uma pergunta velha que pode ser reformulada: ONGs, sindicatos, igrejas, índios, jovens, as 3 mil pessoas que estarão em Porto Alegre se dispõem a debater, junto com a mobilização que pretende ocupar os espaços públicos, a possibilidade de uma globalização com outro feitio e sem o cinismo dos países ricos protecionistas, sem capital voador, sem perseguição a migrantes? Sabe-se como se toma o Estado substituído pelo mercado. Como se toma a globalização?
Em maio de 1995, cinco meses depois de chegar à Presidência, FH escreveu que o Estado deveria encolher por causa da "falência material" e para que fizesse a opção por ações "mais relevantes socialmente". Que Estado é este, que não morre mas encolhe e arrecada cada vez mais, sem as atribuições que carregava até os anos 80? Até onde dura esse Estado-anão? Quem irá sepultá-lo? Toma-se a terceira via - e quantas vezes por dia? O que será de nós, do Cacciola, do Lalau e do ACM sem Estado? Com quem se negocia um fim digno ou pelo menos uma transição gradual para a outra que vem aí?
Moisés Mendes