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Date :  2001-03-15
langue :  Portugais
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Direitos humanos

Direitos humanos


A ouvidos pouco acostumados, a frase que acolhe a idéia de uma mundialização dos Direitos humanos ressoa expontaneamente de um modo assustador. Uma mercadoria a mais veio habitar nosso cotidiano. Um território suplementar caiu sob a influência do equivalente monetário universal. Mais um universal, do tipo com o qual a filosofia, acompanhada de alguns saberes com os quais ela dialoga, se preocupa, está prestes a desaparecer por sua vez, atrás do universal simples das forças em expansão e dos aparelhos representativos que compõem seu cortejo. Uma questão corre o risco de apagar-se sob os aplausos que saúdam sua realização ilimitada. E àquele que persistir em se questionar, apenas um derrisório embaraço parece ainda oferecer socorro para uma última hesitação, a da posição especial daquele que mora pretensamente no país dos Direitos humanos. Como é que ele pode efetuar as operações nas quais se anuncia a realização universal dos Direitos humanos? Como é que ele pode participar delas? De fato, ele fica embaraçado pelo anúncio, pois não pode deixar de ouvir que é de certa forma ele mesmo que se tenta mundializar. Ou seja, suas idéias, seus costumes, sua herança, sua pátria, sua língua. E esse embaraço, porque tem atrás de si séculos de uma arrogância etnocêntrica inacreditável, é também um embaraço sem limite, pois ele não conhece obrigatoriamente um caminho que leve para fora de si mesmo. Constitutivamente arrogante, desamparado diante dessa arrogância, infeliz por causa dela, ele alegra-se publicamente e assusta-se intimamente ao ouvir povos que reivindicam a universalidade da razão, do direito, da idéia de homem, de tudo o que lhe parece ser apenas, de certa forma, ele mesmo ou suas criações.

O caminho mostrado a esse ser é geralmente o de se desfazer de suas identificações mortíferas. Alguém, nós, a filosofia inventamos para ele várias maneiras de se libertar e propriamente de se desligar. Assim, a história da razão deixou-se acompanhar, por exemplo, por observações maliciosas e irônicas já voltadas contra a falsa modéstia dos Ocidentais e suas reticências para enrolar-se gloriosamente num manto de universalidade. Uma malícia e uma ironia dos povos sempre soube dar a entender que o universal para o qual aqueles combatiam não era completamente o mesmo que o desse manto sobre o qual sabiam - é o mínimo - que ele era quase sempre precisamente um manto e que eles não ignoravam quem e que povos o pisoteavam regularmente. Essa mesma história também se deixou acompanhar por alguns modos de ser kantianos: no fundo, parece que se pode dizer, por duas formas de kantismo, dois modos de pensar e de dizer que a Idéia não pertence à experiência. A primeira foi encarnada, de certo modo, na França, na proclamação de uma certa afiliação filosófica e política à idéia de um "Kant hoje", retraçando a fronteira entre, por um lado, a ordem juridicamente perfeita entendida como Idéia concebível e mesmo necessária para homens e os correlatos subjetivos que se deixam associar, e, por outro lado, as imaginações de realidade desenvolvidas pelos pensamentos sociais e utópicos. Para guardar toda a sua força, e principalmente toda a sua força de denúncia em relação a um mundo da experiência enquanto mundo de arcaicas e temíveis dominações, a Idéia deveria ser preservada de deixar-se contaminar pelo real, e a via que se imporia àquele que habita o país dos Direitos humanos deveria ser, em relação a ele mesmo tanto quanto em relação aos outros, a de se fazer filosofia dos Direitos humanos, ou seja, pensador retraçando em si a fronteira entre seu conhecimento do real e seu pensamento da Idéia. O outro lado da mesma questão foi apontado numa outra leitura de Kant, que observou que manter em sua inocência a idéia dos Direitos humanos no meio do desencadeamento das injustiças e dos crimes correspondia, na realidade, a efetuar uma sutura entre a Idéia e o mundo da experiência numa outra vertente, e pactualizar com a ordem empiricamente injusta e criminosa do mundo. Também o pensamento deveria, para esta outra leitura, abrir-se a uma experiência do pavor do mundo e do que nele desencadeia as trovoadas e as tempestades no meio das quais os filósofos dos Direitos humanos erguem alto a bandeira de uma ordem juridicamente perfeita. O pensamento deveria relacionar-se com essas trovoadas e essas tempestades, não através da falsa experiência, da representação banalizada, da tácita aceitação oferecidas por nossas categorizações ordinárias do mundo, mas através do temível, do sublime, do inimaginável, da Idéia, nos quais os Direitos humanos se dizem como impossíveis ou como nome de uma culpabilidade irresgatável.

O erro, de acordo com essas duas últimas concepções, seria, na realidade, o de acreditar na possibilidade de habitar os Direitos humanos. Fazer dos Direitos humanos sua morada - o que faria ingenuamente o habitante do país dos Direitos humanos - o que seria por um lado habitar um mundo que teria perdido a capacidade de colocar à distância o mundo e a Idéia, que não saberia mais proteger o mundo pela Idéia, que se deixaria levar pelas aventuras incontroláveis de uma Idéia que experimentou a embriaguez da encarnação. Seria, por outro lado, habitar o inabitável do mundo, acomodar-se nele e dissimular sua natureza sob representações e declarações apaziguadoras. Mas talvez subsista uma outra possibilidade, que não pensa durante essas catástrofes na associação da Idéia e da habitação. Habitamos lugares. Esses lugares, como lembra Sextus Empiricus (Esquisses pyrrhoniennes, III, 10 e 18), podem ser entendidos de duas maneiras. Pode-se entendê-los sem dúvida no sentido exato, como por exemplo "o ar que rodeia exatamente a superfície do nosso corpo", ou seja, como o lugar que nós mesmos somos, no fundo, e então lugar traduzirá, conforme os impasses lembrados, ao mesmo tempo uma certa evidência que sentimos a respeito da realidade, e uma relação aporética das idéias a essa evidência. Mas os lugares ainda podem remeter, num sentido aproximativo, ao que chamamos nossas casas ou nossas cidades. O que é um "lugar aproximativo"? Sem dúvida, um lugar que resiste ao traçado da fronteira que separa o sentimento de evidência das idéias. Nossas casas, nossas cidades, são o um e o outro. E então a acolhida que nossas casas e nossas cidades, como lugares aproximativos e cheios de idéias, oferecem por si mesmas às idéias, as dispõe de certo modo antecipadamente a idéias como a dos direitos humanos. Uma mundialização dos Direitos humanos não se desdobra numa extensão identificável com esse ou aquele "ar que envolve exatamente a superfície do nosso corpo" em terras estrangeiras. Nesse lugar pretensamente ingênuo, foi escrita, em especial, em 1948, uma peça de teatro intitulada o rei pescador. Nessa peça, a pureza de Perceval era mais uma vez convocada, num mundo atolado na impureza das suas feridas, na dupla conquista dos seus direitos humanos (uma mulher, um reino, uma salvação) e de um Graal. O que havia a se buscar, segundo Julien Gracq, no país dos Direitos humanos nesse 1791? Em plena Idade Média? No desdobramento de um universo dos direitos e de um universo do Graal? A própria figura, ao que parece, da busca do mundo, que se perde cada vez que nossas casas e nossas cidades cedem em suas aproximações em benefício de um "ar que envolve exatamente a superfície do nosso corpo".


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