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Date :  2006-08-25
langue :  Portugais
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Democratização

Democratização

Source :  Tanella Boni


A democratização é uma dinâmica ou uma mutação. Essa mudança é, ao mesmo tempo, momento de interrupção de uma ordem antiga e estabelecimento de novos códigos, novas leis, invenção de uma outra fundação. Em vez da santidade e inacessibilidade de um mundo reservado a alguns privilegiados, o processo de democratização cria um espaço de liberdade onde cada um pode ter acesso ao conhecimento ou aos negócios públicos.

Dois aspectos quanto à idéia de democratização podem, por conseguinte, ser destacados: a democratização como passagem e transição que cria, ao mesmo tempo, um espaço público democrático, mas também a democratização como momento fundador sobre o qual se apóia toda mudança para uma convivência harmônica de cidadãos e estrangeiros, no regime político chamado « democracia », nascido na Grécia no século V antes de nossa Era, e que, no curso da história da humanidade, tomou várias formas.

Imaginando a cidade ideal, Platão via, na democracia, a instauração da desordem que corresponde à subida das classes populares ao poder que elas não aprenderam a conhecer e exercer. Na cidade ideal, governar aparecia como uma atividade reservada àqueles que estavam aptos a governar, os melhores pelo nascimento; mas essa aptidão devia ser reforçada por um longo aprendizado científico. Somente as cabeças, « bem feitas », pensantes, eram chamadas ao poder.

Entretanto, desde essa época, não há democracia (regime político) sem democratização (criação de um espaço público democrático). Na cidade real, os sofistas concedem sua confiança à retórica, eles colocam em cena os poderes da palavra que ensinam a seus alunos.

Assim, eles contribuem à liberação da palavra em praça pública, a ágora. Sua contribuição à democratização da vida social é inegável, pois não se incomodam, como observou Platão, de serem artesãos de dia e, chegada a noite, se envolverem de filosofia, de compartilhar com todos seu saber e sua arte, eles que não tinham nascido para serem filósofos.

Bem mais tarde, na Europa do século XVIII, especialmente na França onde a filosofia das « Lumières » reforça as idéias de liberdade e de razão, o sujeito de direito não é mais o sujeito de um rei ou de um príncipe, ele torna-se um ator incontornável em um Estado fundado sobre as idéias de liberdade e de separação dos poderes. No entanto, a nova cena política que se instaura a partir do final do século XVIII aceita, tão paradoxal quanto isso possa parecer, a idéia largamente compartilhada naquele momento de uma Europa civilizadora. A aplicação dessa idéia se segue pela colonização nos séculos XIX e XX, pelo traçado de fronteiras arbitrárias na Africa após a conferência organizada por Bismarck, em Berlim, em 1884-1885. Essas colônias adquirem sua independência por volta dos anos 60. Na África de língua francesa, são estabelecidos inicialmente, em numerosos países, regimes políticos de partido único dirigidos por « pais da nação ». Em seguida, após a queda do muro de Berlim (1), em 1989, um vento de democratização sopra também sobre as costas africanas. O discurso do Presidente Mitterrand na La Baule, no encontro França-África, em 1990, abre, simbolicamente, o caminho. Novas fundações, em cada país, deviam ser inventadas, assim como novas relações com a antiga potência colonizadora. De 1990 a 1993, conferências nacionais (2), dirigidas, na maior parte do tempo, por homens da Igreja, são lugares de liberação da palavra, de invenção de novos códigos sociais. Esses momentos de democratização resultaram na implantação de novas constituições. Os países nos quais não houve conferência nacional também seguiram o movimento, desenvolvendo outros tipos de transição. Um caso exemplar pode ser aqui citado, o da África do Sul onde uma comissão « Verdade e Reconciliação » presidida por Monsenhor Desmond Tutu foi um lugar de purificação onde a declamação e a retórica eram concebidas como meios necessários à invenção de um novo viver juntos após as violências e os crimes do regime do Apartaide (3). Uma quinzena de anos depois, o balanço das democratizações ainda não convence completamente na África, considerando-se numerosas guerras, violências e violações aos direitos do homem que perduram. Tudo se passa como se, exceto alguns casos (África do Sul ou Benin por exemplo), a democratização iniciada tivesse revelado os limites e as lacunas das democracias instauradas.

Podemos nos perguntar se, em período de globalização, a democratização é possível para todo país, desde que isso seja decidido, do exterior, por uma grande potência. A ingerência, aqui, se faz em nome da liberdade que supõe-se ser um valor universal a qual deve ser introduzida ou trazida a Estados onde ela está ausente. Assim, a ingerência tem-se tornado um dever, como se houvesse urgência em vir em socorro aos países onde falta liberdade, o mais poderoso do momento utiliza todos os meios para chegar a esse fim: democratizar, ainda que isso possa provocar o caos. Somos tentados a dizer que esse exemplo coloca em cena o mais potente que “vos quer bem” e não tem vontade de furtar-se a seu dever de protetor. Ele estaria pronto a tudo para vos proteger, de bom grado ou pela força.

Na verdade, se democratizar é, em uma certa medida, conceber novas normas em vista da felicidade dos cidadãos, pouco importa – no caso evocado – que essas normas sejam ou não aceitas pelo país a democratizar. Tudo se passa como se « trazer » a democracia e a liberdade para tal região do mundo fosse a pedra angular em torno da qual alvos hegemônicos e imperialistas deviam se concentrar. Mas, de uma maneira geral, para quem democratizamos? Para o bem estar e a perenidade da potência que pratica a ingerência ou para o viver juntos dos povos em questão? E quem, portanto, democratiza? O processo que se engaja segundo a vontade de uma grande potência, qualquer que seja, poderá defrontar-se com fenômenos de resistência como constata-se no Afganistão ou no Iraque. Isso poderia também avivar conflitos latentes e inflamar toda uma região: não faltam exemplos. A liberdade trazida do exterior pode ser percebida, na verdade, como um cerco suplementar contra o qual se estabelece uma luta interna apoiada sobre valores culturais e religiosos compartilhados por comunidades na falta de sê-lo por um Estado. Essa resistência se faz também em nome da liberdade dos povos e dos indivíduos em querer pensar por si mesmos e desejar um destino de acordo com suas próprias aspirações.


Traduzido por Tchaurea Gusmao




Notas

(1) No espaço de um século, a cidade de Berlim terá sido, na memória coletiva dos Africanos, um lugar altamente simbólico.
(2) Ver Fabien Eboussi-Boulaga, Les conférences nationales en Afrique, une affaire à suivre, Paris, Karthala, 1992.
(3) Ver Antjie Krog, La douleur des mots, trad. française, Paris, Actes sud, 2004.
Sob a direção de Barbara Cassin, Olivier Cayla et Philippe-Joseph Salazar, Vérité, réconciliation, réparation, Le genre humain n°43, éd. du Seuil, 2004.


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