Criado com a determinação de mudar o mundo, até agora foi o Fórum Social Mundial que passou pelas maiores transformações.
O principal encontro da esquerda enfrenta hoje sua mais aguda crise de identidade desde a fundação, em 2001.
O Fórum nasceu como enclave anti-Davos - o encontro da elite econômica mundial na Suíça - e já teve como marcas o combate ao mercado financeiro e à guerra no Oriente Médio. Em sua quinta edição, este ano, deixou de ostentar uma bandeira principal e procura uma nova forma de organização.
Um dos idealizadores do evento, o sociólogo Emir Sader, é um dos críticos do modelo atual, com eixos temáticos independentes e sem os chamados testemunhos, nos quais palestrantes célebres atacavam a política americana diante de platéias lotadas.
- Começamos com a idéia de oferecer uma alternativa. Depois, nos mobilizamos contra a guerra. Agora, existe uma fragmentação das temáticas, não temos um balanço geral do movimento - condena Sader.
A participação de antigos ícones também sofreu mudanças. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, recebeu vaias este ano. Ativistas como o francês José Bové e a líder das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, sequer viajaram a Porto Alegre. O jornal francês Libération apontou a ausência de pesos-pesados da política mundial em Porto Alegre.
Os organizadores concluíram que, para mudar o mundo, será necessário mudar ainda mais o Fórum. A sugestão de Lula de se estabelecer uma colaboração entre as reuniões de Porto Alegre e Davos, entretanto, não é bem recebida.
- Aquilo (Davos) é um empreendimento, um negócio. Tem um presidente, uma diretoria. Aqui, são pessoas que conversam - avalia o empresário e membro da organização do Fórum Oded Grajew, ex-assessor especial de Lula.
A solução mais aceita pelos promotores do Fórum para permitir uma maior participação nos encontros e a concretização das propostas apresentadas é a regionalização do evento.
- É difícil custear um evento anual desses e mobilizar as pessoas em torno de ações concretas. Fica mais fácil por meio de discussões regionalizadas - explica Sader.
No caso da América do Sul, uma das possibilidades aventadas nos bastidores é a realização de um fórum regional em Caracas, na Venezuela, em janeiro do ano que vem - o que frustraria a esperança de que Porto Alegre volte a abrigar a esquerda internacional em curto prazo.
A decisão final sobre os rumos do movimento antiglobalização deverá sair somente dentro de dois meses, depois de nova reunião. Em busca de uma maior efetividade - o que Davos, seus líderes mundiais e bilhões de dólares têm de sobra -, os organizadores terão de dar uma resposta definitiva à questão: um outro Fórum é possível?
Quais seriam as conseqüências se em janeiro Davos ardesse ao sol e os telhados de Porto Alegre ficassem cobertos de neve? Veterano do encontro anual na Suíça, o conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, Roberto Teixeira da Costa, diz que não consegue evitar a questão ao comparar os dois encontros. Talvez houvesse menos festividade na Capital, responde. E na gelada Davos?
As montanhas suíças continuam com uma grossa camada de neve, mas a reunião da elite financeira internacional está mais próxima das barracas brancas da orla do Guaíba. E não é só pelo fato de que, desde o ano passado, a comissão organizadora proibiu gravatas nas reuniões que, de resto, continuam no pescoço de muitos dos cerca de 2 mil participantes. Na edição deste ano, as mensagens de Davos exortam à necessidade de combater a pobreza - o mais importante assunto em Porto Alegre. Para Teixeira da Costa, no entanto, esse deve ser o máximo de aproximação entre os dois fóruns.
- Vejo mais chances de Davos chegar ao lado social do que o Fórum Social dar ênfase aos princípios do Fórum Econômico. O tsunami (maremoto que devastou a Ásia nos últimas dias de 2004) teve um efeito sobre os corações e mentes. O establishment percebeu que é preciso fazer algo pelos pobres, não só pelo aspecto humanitário, mas também por questões de segurança e de sustentação do ritmo de crescimento da economia mundial - analisa o economista.
Desde que ganhou o contraponto do lado de baixo do Equador, Klaus Schwab, o fundador do Fórum Econômico Mundial providenciou maior presença de ONGs na programação. Celebridades engajadas em causas humanitárias desfilam com mais freqüência sob o fundo azul das salas de debates.
Há semelhanças com Porto Alegre. Nas programações paralelas de Davos, há oficinas sobre todo tipo de assunto. Pode-se aprender a importância do sono. E sentar ao lado do megainvestidor George Soros numa palestra sobre memória ou sobre o futuro dos museus.
- Fóruns não são para tomar decisões, mas para fomentar o debate - diz o ex-embaixador Rubens Barbosa.
Barbosa enxerga complementaridade nas duas agendas, resultado de fenômenos como o agravamento da fome no continente africano.
Opiniões
"Sem uma visão geral, transversal, o movimento acaba se fragmentando. As ONGs não têm visão política, são regionalizadas." Emir Sader, sociólogo
"Não adianta ficar autoritário e centralizador. Não dá para pensar um novo mundo sem abrir espaço para a diversidade." Oded Grajew, empresário e idealizador do Fórum Social
"A discussão sobre os campos comuns possíveis entre o Fórum de Porto Alegre e o de Davos é uma missão compreendida nessa visão coletiva." Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República
"Davos tem uma agenda que coincide com a de Porto Alegre porque ambos tratam de como aliviar a pobreza. Mas o tratamento é diferenciado. Um reúne economistas, líderes mundiais. Em Porto Alegre, há maior presença de ONGs mais radicais." Rubens Barbosa, ex-embaixador brasileiro em Washington
"Este ano, ficou mais evidente o complexo de culpa da elite. Caiu a ficha." Roberto Teixeira da Costa, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Exteriores
A curta trajetória do fórum social
- 2001
Em janeiro, o Fórum Social Mundial é lançado como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, e abarca atos polêmicos: o agricultor e sindicalista José Bové participa da destruição de dois hectares de soja geneticamente modificada no município de Não-Me-Toque. No diia 28, uma teleconferência de contato entre Porto Alegre e Davos (foto) acaba em bate-boca entre a líder das Mães da Praça de Maio Hebe de Bonafini e o megaespeculador George Soros.
- 2002
Depois da repercussão do primeiro encontro, a segunda edição do Fórum amplia a atenção internacional e atrai nomes como Noam Chomsky, Adolfo Pérez Esquivel e Baltazar Garzón. O Fórum é aberto com uma marcha pela paz.
- 2003
O recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva transforma-se na grande estrela do Fórum e é ovacionado no primeiro dia de debates do evento, em um discurso no Anfiteatro Pôr-do-Sol.
- 2004
Depois de três edições realizadas em Porto Alegre, o Fórum se muda para Mumbai, na Índia. Em uma versão mais compacta e menos pretensiosa, se realiza como uma tentativa de aproximar o encontro das populações e organizações mais pobres da Ásia.
- 2005
A volta a Porto Alegre marca o fim de uma era do Fórum Social Mundial. Sem uma grande bandeira e em busca de novos formatos, o encontro se divide em discussões temáticas e anuncia que vai se tornar itinerante e, provavelmente, regionalizado.
A longa marcha do fórum econômico
- 1970
Um encontro informal de chefes de Estado em Davos, promovido pelo professor de administração suíço Klaus Schwab, é o embrião do Fórum Econômico Mundial.
- 1971
A glamourosa estação de esqui suíça abriga o Simpósio de Davos, patrocinado por instituições e fundações européias. Empresários e executivos são convidados. O encontro passa a ser anual.
- 1987
O ministro do Exterior da Alemanha, Hans-Dietrich Genscher, pede aos participantes que "dêem uma chance ao presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev", marcando o começo do fim da Guerra Fria.
- 1992
O presidente da África do Sul, Frederik de Klerk , e o então ativista Nelson Mandela se encontram pela primeira vez fora do país.
- 1999
O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, conclama empresas privadas de todo o mundo a aderirem aos princípios do Global Compact, tratado das Nações Unidas sobre direitos humanos.
- 2001
Depois da explosão de conflitos com manifestantes contrários à globalização, em 2000, em Seattle (EUA), a programação do Fórum Econômico inclui como se relacionar com as ONGs.
- 2002
Pela primeira vez, a sede do encontro é transferida para Nova York, em solidariedade à cidade depois dos atentados de 11 de setembro de 2001.
- 2003
Recessão global e uma possível invasão do Iraque dominam a agenda do encontro, marcado por choques entre a polícia e manifestantes antiglobalização. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa pela primeira vez do evento.
- 2004
Os escândalos financeiros das grandes corporações privadas e o déficit dos Estados Unidos dividem os holofotes com a China. Davos é novamente uma área de segurança máxima, com grande número de policiais nas ruas. É proibido o uso de gravatas.