Antes da era eletrônica, o que caracterizava os mercados de ações e financeiros tradicionais, era uma certa materialidade e também uma certa estabilidade. A recíproca dessa materialidade era que cada um - mesmo quando o anonimato era preservado - podia ser identificado como investidor ou como receptor de um investimento, como emprestador ou como devedor: havia sujeitos, mesmo que no mais absoluto segredo, e sujeitos cuja responsabilidade podia ser buscada, se eles tivessem falhado em sua missão ou em seus compromissos... Ora, tudo isto mudou: os títulos foram "desmaterializados", sua aparência física em forma de ricos papéis foi questionada, e caiu-se rapidamente numa simples incrição em uma conta que passou a ser eletrônica. Uma nova etapa foi vencida, com o crescimento muito rápido das transmissões, da circulação das informações e das ordens, com a possibilidade aberta pelas novas tecnologias da comunicação e da informação (as "NTIC") de efetuar transferências de fundos ou de títulos em prazos ínfimos. A desmaterialização, em seu movimento irresistível, varre desse modo as regras que tornavam o mercado freqüentável para os pequenos devedores e credores. O controle das trocas torna-se uma utopia, e o do dinheiro sujo também.
Os créditos são cada vez menos "certos" - no sentido jurídico do termo -, e as dívidas parecem sempre menos legítimas. Torna-se cada vez mais fácil repudiá-las, principalmente quando se é rico e poderoso. As dívidas e os créditos assumem assim um valor muito relativo, que não depende mais de uma medida, de uma convenção reconhecida, mas das circunstâncias nas quais eles são avaliados. Simultaneamente, as empresas se vendem a preços que não estão mais ligados a uma performance econômica real, histórica, mas a uma forma de sonho sobre o que poderiam ser seus ganhos e seus lucros futuros.
Esse fenômeno pode ser encontrado em todas as áreas da vida econômica e financeira dos Estados, das "pessoas morais" e das "pessoas físicas". O tratamento internacional das dívidas (os rescue packages - "pacotes de salvamento" - do FMI, dos Clubes de Paris e de Londres...), a globalização dos mercados financeiros e o desenvolvimento multiforme de uma economia de endividamento que acompanhou, ou que provocou, com um sucesso evidente, o crescimento dos anos 1990, todos esses fenômenos ligados convenceram o maior número de pessoas com o sentimento de que a dívida pública não era um assunto tão sério quanto parecia, que não merecia toda a atenção que lhe foi dada - e, in fine: que era possível desinteressar-se dela.
Um fenômeno análogo também pode ser notado com o desenvolvimento extraordinário, destinado às pessoas físicas, dos cartões de pagamento e de crédito dos bancos e das grandes instituições mercantis. Todos sabem que a difusão dessas formas de pagamento eletrônicas, se estimula o comércio de modo positivo para os produtores e os negociantes, também provoca certos efeitos perversos que tornam ambíguo o resultado global da operação para a sociedade. Dentre esses efeitos, o mais evidente é um aumento do endividamento das famílias.
Porém, o mais inquietante parece ser menos o endividamento generalizado do que aquilo que o provoca, o estende e pereniza, a saber, a negação de qualquer medida, dessa medida das necessidades que é a própria justificativa da moeda, tal como a define Aristóteles no Livro V da Etica em Nicomaque: “A moeda submete-se às mesmas flutuações que as outras mercadorias (pois ela nem sempre tem o mesmo poder de compra); ela tende, no entanto, a uma maior estabilidade. Disso resulta que todas as mercadorias devem ser antecipadamente estimadas em dinheiro, pois deste modo sempre haverá possibilidade de troca, e conseqüentemente, comunidade de interesses entre os homens. A moeda, que passa então a desempenhar o papel de medida, torna as coisas mensuráveis entre si e as leva, desse modo, à igualdade: pois não pode haver nem comunidade de interesses sem troca, nem troca sem igualdade, nem, finalmente, igualdade sem mensurabilidade” (1).
A “comunidade de interesses entre os homens” que pela medida do dinheiro unia vendedor e comprador para o bem comum deles e para o da Cité, essa comunidade perde seu valor em detrimento de um risco generalizado. Alguns vendem por qualquer preço, sem preocupação com a contrapartida real do dinheiro que lhes cabe; outros compram com esse mesmo espírito, ignorando qualquer prudência, até mesmo deliberadamente. Esses movimentos individuais e coletivos contribuem para restaurar o estado de natureza e para destruir o da Cité. Eles minam a comunidade política contemporânea, seus valores, seus pontos de referência, as relações entre seus membros. Cada cidadão estimando-se autorizado a não mais seguir as regras de gestão prudente que prevaleciam antes (quando a norma era não gastar mais do que se ganhava…), a desconfiança torna-se oportuna: a única coisa que conta é a preservação do patrimônio privado, a qualquer preço. O que se afasta do reconhecimento do interesse geral e de certas exigências democráticas elementares.
Um tal regime de ausência de pressões formais e de limites temporais deve ser aproximado do regime da acomodação que Platão denuncia vivamente na forma pervertida da democracia que não passa de demagogia: “Nessa cité, não se é de modo algum pressionado a dirigir, mesmo quando se está apto a fazê-lo, nem tão pouco a ser dirigido, se não se quiser isto, nem a guerrear quando os outros o fazem, nem a ficar em paz quando os outros estão, se nós mesmos não desejarmos a paz (…) Eis, portanto, as características da democracia: regime delicioso, sem direção verdadeira e como uma colcha de retalhos, distribuindo uma certa forma de igualdade, de modo idêntico, aos que são iguais e aos que não o são.” (2). Efetivamente, este regime dito “liberal” é claramente produtor de uma falsa igualdade. Num primeiro momento, cada um faz o que quer, sem limitações; em seguida, os fracos, os menos armados (intelectualmente, socialmente…) são massacrados à primeira “crise do mercado”, enquanto os poderosos tiram suas cartas do jogo. A partir daí, todo o campo disponível na praça pública contemporânea é deixada ao único sujeito que permanece sujeito: a saber, o próprio Dinheiro!
Notas
(1) Aristóteles, Ethique à Nicomaque, trad. Tricot, Vrin.
(2) Platão, La République, trad. P.Pachet, Folio.
(Este artigo foi editado a partir de um versão longa redigida pelo mesmo autor, que pode ser visitada em francês no
seguinte endereço: Dématérialisation de l’argent, déresponsabilisation du sujet politique)