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Date :  2001-01-27
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"Não venderemos o sangue dos nossos filhos"


Hebe de Bonafini se acostumou a ser chamada de louca. Há 23 anos, a presidente da Associação Mães da Praça de Maio resiste, ao lado de cerca de 2 mil companheiras, aos cassetetes da polícia, às ameaças de prisões, mortes e ao pejorativo adjetivo imposto pelos militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1983. O horário é sempre o mesmo. Todas as quintas-feiras, às 15h30min, as pombas que ocupam a Praça de Maio, no coração de Buenos Aires, cedem lugar ao grupo de mulheres de lenços brancos na cabeça. É lá, em frente à Casa Rosada, a sede do governo argentino, que as mães dos desaparecidos políticos da ditadura reprisam todas as semanas suas perturbadoras manifestações. Dezoito anos depois de os militares terem deixado o poder, as mães não lutam apenas pela memória de seus filhos. Querem justiça social, criticam o governo e rejeitam o pagamento da dívida externa.

Convidada de honra do Fórum Social Mundial, sua participação no evento estava prevista para a tarde de sábado. Em entrevista a Zero Hora na última quinta-feira, a mulher com o olhar forte de quem venceu a dor do desaparecimento de três
filhos garantiu: Não queremos indenizações ou monumentos em homenagens aos desaparecidos. Não venderemos o sangue dos nossos filhos.

Zero Hora - A Argentina conseguiu superar as marcas da ditadura e encontrar o caminho da reconciliação?
Hebe de Bonafini - Todo mundo fala em paz, mas ela não é construída apenas com palavras. Apenas falar de paz é uma mentira. A pacificação nunca vai chegar por causa das leis de anistia criadas pelo governo. Os assassinos estão ocupando cargos no atual governo. São ministros, prefeitos de diferentes lugares da província de Buenos Aires. São assassinos e torturadores. Este é um governo repressivo e mentiroso. Apresenta uma face ao Exterior e, internamente, mostra outra. Para os outros países, é um governo muito democrático. Na realidade, porém, é perverso.

ZH - Na última década, as Mães da Praça de Maio passaram a atuar em lutas sociais, apoiando os desempregados, por exemplo. O que levou a entidade a abrir mão, de certa forma, da busca pelos corpos dos desaparecidos em favor de uma forte oposição ao governo argentino?
Hebe - Levantamos as mesmas bandeiras revolucionárias dos nossos filhos, mas de outras maneiras, em outro tempo. Levantamos a bandeira da luta social. Acompanhamos as passeatas, as invasões de fábricas e de terras. Em 16 de abril do ano passado, abrimos uma universidade em Buenos Aires que tem o objetivo de fazer com que os jovens se comprometam com a política. Para que façam política de uma maneira sã.

ZH - O que o presidente Fernando de la Rúa tem feito para pacificar o país?
Hebe - Ele se junta aos militares. De vez em quando, os militares reconhecem que cometeram algum abuso e dizem: "agora queremos pacificar o país". Eles querem pacificar construindo monumentos para os mortos. Não vamos reconhecer a morte dos nossos filhos. Querem pagar indenizações de US$ 250 mil por cada desaparecido. Não queremos dinheiro, queremos justiça. Não venderemos o sangue dos nossos filhos. Somos a única organização que não reconhece a morte dos nossos filhos. Eles estão desaparecidos para sempre. Somos revolucionárias, acreditamos na revolução. Estamos muito felizes por estarmos aqui. Porto
Alegre é um lugar muito querido para as mães. Estamos juntando um monte de pessoas que pensam como nós: que a dívida externa não deve ser paga. Na maioria dos países, a dívida é paga com vidas, com pobreza, desemprego, miséria. A falta de trabalho é um crime pelo qual ninguém paga. Não devemos nada ao FMI (Fundo Monetário Internacional) nem aos EUA. Os novos desaparecidos do sistema capitalista são os desempregados e as crianças que vivem nas ruas.

ZH - Vocês acreditam que o ex-ditador chileno Augusto Pinochet será condenado pela Justiça?
Hebe - Todos são mentirosos. Todo mundo sabe que Pinochet é um assassino, um torturador e se está dando tanta importância para o caso. Ficam se perguntando se podem processá-lo ou não.

ZH - A senhora acredita que o general será processado?
Hebe - Não. Todos os torturadores argentinos que seqüestravam bebês em nosso país estão em prisão domiciliar. Videla (ex-presidente Jorge Rafael Videla) e Massera (almirante Emílio Massera, criador do centro de tortura Esma) saem de casa quando querem, vão à missa, vão a restaurantes. Isso é muito perverso. Os juízes são todos cúmplices. Cobram grande quantidade de dinheiro, suborno. A Justiça está totalmente comprometida, porque é a mesma de antes, que não fez justiça na época de nossos filhos. Por isso não acreditamos em reconciliação. Não nos reconciliamos, não perdoamos. Não queremos nada que o sistema nos oferece.

ZH - Qual o caminho para a reconciliação então?
Hebe - É colocar os assassinos na prisão.

ZH - Qual a sua opinião sobre a participação de Cuba, onde o presidente Fidel Castro governa o país há 40 anos, sem eleição, num fórum que se propõe a discutir a democracia?
Hebe - Cuba tem uma posição incrível quanto ao pagamento da dívida externa. É um país que eu amo. É um povo que tem se mantido apesar do embargo dos EUA.

ZH - E quanto à participação no fórum da guerrilha Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), acusadas de financiarem o narcotráfico?
Hebe - As Farc também estão fazendo um grande trabalho, apesar de serem acusadas da forma como são. Apoiamos porque o povo tem direito de pegar em armas quando é asfixiado. Todos os povos têm este direito. Está estabelecido na Constituição o direito de pegar em armas contra o opressor, contra quem lhe tira os filhos. O governo argentino, por exemplo, viola os direitos humanos todos os dias. Os presos de todas as penitenciárias de Buenos Aires e de quase todo o país estão em greve de fome, porque estão amontodados em celas.

ZH - Como estão as investigações para a localização dos corpos dos desaparecidos?
Hebe - Alguns foram devolvidos. Sabemos que todos não vão aparecer. Os militares foram os serventes dos grandes grupos econômicos mundiais. Esses grupos produziram o horror. Para mim, não adianta buscar quem matou meus filhos. Havia um projeto de destruição de opositores políticos. E quem firmou essa destruição hoje é governador da província de Buenos Aires (Carlos Ruckauf) e se apresenta como candidato a presidente. Meus filhos não estão mortos. Os desaparecidos não são
cadáveres. Um revolucionário nunca é um cadáver.

ZH - Os regimes ditatoriais foram enterrados juntamente com o século 20?
Hebe - Não. Haverá outras formas de ditaduras: a dívida externa é uma delas. Não são homens com roupas militares, são homens com terno e gravata, mas fazem o mesmo que os militares. A dívida externa é uma forma de dominação, de repressão, porque que mais sofrimento para um homem que chega em casa e não sabe se no outro dia terá trabalho?

ZH - A senhora acredita que novos regimes ditatoriais podem surgir no século 21 na América Latina?
Hebe - Creio que a sociedade e o povo devem aprender a conhecer seus direitos. A Universidade das Mães da Praça de Maio tem um fundamento: abrir escolas nos bairros marginais, onde as crianças não tem a possibilidade de estudar porque não têm documentos de identidade. Queremos que os que não têm documentos também se preparem, porque um povo analfabeto é fácil de dominar. Um povo que ama o saber é muito rebelde, difícil de dominar. Temos de ser indomáveis. Não podemos nos moldar a que nos dizem: "ande por aqui, caminhe por aqui, não peça, não reclame, não fale". Estão nos moldando. Por os sem-terra brasileiros, que são indomáveis, são um grande exemplo para nós.

ZH - Como está a situação dos bebês que foram seqüestrados pelos ditadores?
Hebe - A maioria tem 25 anos agora. Têm alguns que foram recuperados, que moram com suas avós. Outros não querem voltar, e respeitamos essa decisão, porque já sofreram demais.

ZH - O crescimento da esquerda nos países do Cone Sul, como nas últimas eleições no Uruguai, por exemplo, significa que estão mais próximos do poder?
Hebe - A esquerda cresce, mas de uma forma muito fraca. Não é um sentimento forte, com um sentimento combativo. Uma esquerda que se junta com qualquer outro grupo. Assim não vai para frente. A esquerda, assim como se conhece, perdeu a credibilidade. Os movimentos sociais existem, mas estão cada vez mais apagados. É culpa da repressão que ainda existe . As pessoas têm medo de serem processadas.

ZH - Como a senhora avalia a indicação das Mães da Praça de Maio para Prêmio Nobel da Paz deste ano?
Hebe - Esta é o terceira vez que somos indicadas para o prêmio. Não trabalhamos para isso, mas se vier será bem-vindo.


Rodrigo Lopes
Agência RBS


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