A "diversidade cultural" é invocada por qualquer motivo, em qualquer instância, sem avaliação crítica e com uma inflação verbal que cresce incessantemente. Ora, certamente é um mau serviço que se presta à causa essencial que deveria justamente representar uma tal expressão, hoje com muita freqüência reduzida à dimensão de um slogan. Diante de uma publicização mercantil que dissolve seu próprio interesse e validade, parece indispensável refazer da diversidade cultural um conceito, e restituir a esse conceito uma dignidade própria e excepcional, decididamente ancorada em seu horizonte contemporâneo.
Com essa convicção, gostaria de colocar aqui os limites que propus no Dictionnaire critique de "la mondialisation" (1) para sugerir uma definição ainda menos normativa e instrumental, mas que possibilitaria responder a certas incertezas desde que se tratou de cultura(s). Uma definição que não pretende ser nem neutra, nem ecumênica, e cujo objeto não é uma descrição, mas sim uma interpretação, assumida e reivindicada como tal.
Definirei portanto a diversidade cultural com cinco palavras que explicarei. Essas cinco palavras são: "diverso", "cultural", "dinâmica" , "resposta" e "projeto". Parece-me que com a ajuda dessas cinco referências, no feixe que criam através de sua combinação, pode advir uma redefinição útil e pertinente.
Diverso
Primeiro ponto, a diversidade cultural é diversa, o que constitui o primeiro sujeito de omissão e de deslize coletivos. Como se o diverso de diversidade fosse evidente, e como se cada um o entendesse de modo homogêneo, idêntico... e, precisamente: não diverso!
Não suprimamos então uma vez mais o passado, e esforcemo-nos em lembrar o conteúdo, a essencialidade do diverso da diversidade. Pois esse diverso não poderia ser confundido com seus equivalentes usuais: o diferente, o plural, o múltiplo, o variado etc. O diverso reclama uma dignidade lógica e ontológica própria, sem a qual não poderíamos basear nenhuma esperança sobre ele, sobre sua "durabilidade" (obsessão da época!) e sobre a possibilidade de mobilizar a seu favor de modo perene uma vontade política e social amplamente partilhada. É por isso que devemos reconhecer imediatamente que o diverso da diversidade, com sua acepção contemporânea nas línguas latinas e anglo-saxônicas...é apenas uma noção bastante frágil e aproximativa - que certamente ainda não constitui um conceito. Assim, para o Dicionário Le Robert, o diverso é apenas "o que apresenta vários aspectos, vários caráteres diferentes, simultânea ou sucessivamente" - definição característica da habitual vacuidade conceitual da palavra.
O diverso é amável, simpático, mas não diz muito, e é sem dúvida nessa não distinção que é preciso identificar a origem do entusiasmo consensual que ele suscitou nos últimos anos, após as disputas que opuseram as partes a respeito do conceito bruto, vivido e de antiga origem jurídica da "exceção". Parece portanto urgente fazer com que o ainda-não-conceito de diversidade saia dessa flacidez amável que fez seu sucesso.
A esse respeito, o retorno à acepção latina do diversus parece-me indispensável. Quando destacamos seu emprego em César (2), Salluste (3), Tácito (4), que o usam amplamente, notamos que o seu significado é majoritariamente o de oposto, divergente, contraditório, diferente no sentido ativo, e não o que predomina atualmente, o de "variedade", e até mesmo de "múltiplo".
Divertere é tomar uma direção diferente, soltar-se, separar-se, afastar-se. Há a constância da dimensão do movimento e da luta, mas também, simplesmente: da vida, que nada tem a ver com a pura constatação contábil, se não administrativa, da variedade ou da multiplicidade. Na perspectiva de uma refundação do conceito de diversidade cultural sobre bases mais sólidas, torna-se importante reatualizar esta etimologia de um diversus que não é uma constatação, mas um movimento que advém da luta, mais do que por uma espécie de consenso amável.
Cultural
Segundo ponto, e não sem importância, que deve ser compreendido com todas as suas conseqüências: a diversidade cultural é cultural! Nem tautologia, nem verdade banal, exijo o maior respeito neste sentido. Tanto mais que a Conferência mundial sobre o desenvolvimento sustentável de Joanesburgo, em agosto de 2002, sempre confundiu o destino da biodiversidade com o da diversidade cultural, e sempre afirmou a importância de se aproximar as lutas em favor da preservação dessas duas espécies de diversidade (5) - cavalo de batalha apropriado pelo político sem as verificações ou precauções de hábito...
Ora, o assunto é grave ! Pois, se desejamos que o conceito adquira alguma dignidade filosófica e algum valor jurídico, não poderemos aceitar que a diversidade cultural possa ser "natural"... Imaginar-se "reforçando-a" ao naturalizá-la - repatriando-a para a ordem da natureza - seria não somente ingênuo, mas também criminoso, de um ponto de vista filosófico e antropológico. Isto teria como corolário e como conseqüência simplesmente negar a especificidade própria da cultura e apagar sua tradição de pensamento moderno.
Inversamente, o diversus da diversidade cultural deve requerer sua etimologia para lembrar que só há - que só pode haver - diversidade cultural na luta das formas culturais, por um lado, contra "a natureza" - e sua própria "biodiversidade" -, e por outro lado, contra outras formas culturais. O diverso cultural só se torna o que ele é na prova desta dupla luta incessante com o biodiverso e com ele mesmo (com o outro e o múltiplo das culturas). Aliás, tal constatação possibilitaria evitar a polêmica recorrente sobre o "multicultural" e o "intercultural" .
Efetivamente, o multicultural situa-se claramente ao lado da biodiversidade e de seu há: há multicultural como há biodiverso, isto é bom e deve ser preservado... Com todas as morais do múltiplo que disso decorrem. De um modo diferente, o "intercultural" lembra, por seu conceito, que as culturas só advêm por seu conflito com as condições e as formas naturais, mas também apenas por e em seus encontros com outras culturas.
O inter de intercultural pode designar um encontro pacífico ou guerreiro, mas certamente um encontro que produz diversus.
Dinâmica
Terceiro ponto, intimamente ligado aos precedentes: a diversidade cultural não poderia ser estática, rígida e contábil. Ela pretende ser dinâmica, e de sê-lo sem cessar, sem o que ela se reduziria à forma morta do inventário patrimonial. Imaginemos um instante uma "área musical" dentro da qual haveria apenas catálogos de edições musicais que nos esforçaríamos para "conservar" e "promover" sem associar a elas uma atividade de desenvolvimento e de produção de novas músicas... Este lugar preservado não poderia absolutamente ser chamado de "lugar de diversidade cultural", mas de "cemitério" ou "sopa cultural", pois faltaria aí um diversus que só poderia nascer de uma atividade de produção viva, voluntária, perene, enfim, "diversificada"...
Isto também pode parecer "evidente", e, no entanto, os discursos dominantes - a começar pelo discurso do Príncipe - sobre a diversidade cultural são de uma grande pobreza em relação a tal exigência dinâmica.
A própria idéia de "preservar e de promover a diversidade cultural", que adquiriu a justo título uma certa notoriedade desde novembro de 2001 e da aprovação da Declaração Universal da UNESCO, e ainda que ela designe claramente um processo, um movimento, permanece ainda estática demais.
Ela confina a diversidade de que se trata dentro do estatuto de um sendo que não traz em si mesmo o movimento próprio do diversus. Tudo se passa como se essa idéia tivesse medo de assumir a conflitualidade intrínseca ao movimento da diversidade cultural - o reconhecimento de que esta diversidade só se desenvolve pelo conflito, ainda que este não seja mortifero. Tudo se passa como se se tratasse sobretudo de normatizar antes, para poder em seguida "administrar melhor" uma diversidade cultural que nos esforçaríamos em esquecer não ser apenas produtora de arte e de beleza, mas que ela também se encontra na origem de muitos conflitos humanos.
Ao contrário desta atitude (política convencional) de evitamento sistemático daquilo que poderia incomodar no diversus, sugiro valorizar as ambiguidades e as condições inerentes à dinâmica intercultural. Tanto o que ela pode ter de destruidor num plano sociopolítico, quanto o que ela pode construir no centro da Polis - todos esses laços que ela pode tanto fazer quanto desfazer, sem que seja necessário selecionar, programar apenas a parte "positiva" do processo, e de desfazer-se de sua parte obscura.
Reivindicar que a diversidade cultural seja dinâmica e não somente contábil pressupõe renunciar à ingenuidade da diversidade "necessariamente boa" e preparar-se para compreender a complexidade de sua contribuição para a elaboração do mundo.
Uma resposta
Quarto ponto: a diversidade cultural deve deixar seu estatuto habitual de "questão" para ser entendida como uma "resposta". Esta observação possibilita também especificar a natureza da dinâmica que acaba de ser evocada. Efetivamente, na apreciação corrente da diversidade cultural, o movimento das interrogações que ela gera se reduz a pouca coisa, que ainda não forja uma dinâmica: perguntamo-nos sobre o sentido e sobre os limites da diversidade cultural; esforçamo-nos em inventariar as formas; debatemos sobre o desaparecimento dos patrimônios etc. Mas não colocamos no centro da reflexão e da ação que ela suscita a idéia de que ela pretende ser uma resposta: uma resposta política, uma resposta social, uma resposta educativa, e até mesmo uma resposta econômica.
Habituamo-nos a entender de modo bastante passivo a diversidade cultural como algo que lança um desafio à humanidade, que a questiona e que é em si mesma uma questão. Mas não a entendemos suficientemente como algo que, por seu próprio movimento, traz respostas à humanidade, algumas positivas - desejadas e aprovadas - outras perfeitamente indesejáveis.
Algumas: descoberta intercultural, fraternização, convivialidade, fertilização das criações, partilha dos saberes e das obras... Outras: intolerância, desprezo, proscrição, apropriação intelectual e jurídica, dominação global, guerras... Ou seja, respostas problemáticas que escapam ao pudor normativo da diversidade cultural como questão. É por isso que proponho perceber a diversidade cultural simultaneamente como uma questão e como uma resposta: uma questão incessantemente formulada e lancinante sobre o que ela poderia ser, e uma resposta que, sem cessar, encontra, inventa e se encontra.
A resposta que traz em si a diversidade cultural está na própria imagem do diversus em latim: é a oposição entre forças que conduzem o mundo em sentidos contrários: é a contradição entre resultados ambíguos (por exemplo, o crescimento quantitativo e qualitativo dos "bens e serviços culturais"). Em uma palavra, é a Aufhebung no sentido hegeliano: aquilo que "suprime", "mantendo" e "recriando" - este revezamento (relève, como traduz Derrida em francês) que se lembra de sua história abolindo-a, que é capaz de ultrapassar tal história assumindo seus crimes e suas grandezas, um revezamento que leva o movimento de cultura mais adiante.
Um projeto
Quinto e último ponto: a diversidade cultural deve se tornar o que ela é - ou o que não deveria ter deixado de ser - ou seja, um projeto. Aos espíritos iluminados, isto pode ainda parecer uma verdade banal, e no entanto! Quanto nos distanciamos desta acepção e deste modo de viver e de dizer - de pleitear, em último caso - pela diversidade cultural! Pois esta diversidade, de que tanto se fala, com freqüência é confinada a um papel de extrema passividade: o da beleza que deve encontrar seus protetores; o do Bem (sempre ele!) que deverá ser defendido; o do patrimônio (reflexo de banqueiro), que deverá ser salvaguardado ("obras de arte em perigo", dizia-se antigamente), se não valorizado...
Assim, a diversidade cultural encontra-se integrada, de modo crescente, em projetos políticos, administrativos, gestionários, de marketing, multilaterais... que fazem dela um elemento privilegiado de sua estratégia, a chave de um discurso correto e aceitável em qualquer lugar... mas que no entanto não é percebida em si mesma, per se, como um projeto autônomo, que para existir poderia eximir-se de fazer prosperar outros.
Ora, para merecer as esperanças que muitos baseiam no conceito que ainda não conseguiu fazer esquecer sua fragilidade de princípio, a diversidade cultural não tem realmente escolha, num momento em que 1) a OMC está pronta a liberalizar quase tudo o que diz respeito às dimensões educativa e cultural; em que 2) a privatização dos saberes, dos rituais e dos patrimônios mais antigos e mais públicos - no sentido do interesse geral e público - é conduzida pelas "companhias maiores" multinacionais num ritmo desenfreado, enfim, em que 3) a cultura, em todos os seus aspectos, tornou-se uma mercadoria - uma commodity - entre outras, mas também entre as mais lucrativas (como se vê claramente com a rivalidade Estados Unidos / União Européia sobre os "bens e serviços culturais"), com a cascata de produtos derivados e suas indústrias determinadas a dissolver qualquer veleidade de independência.
Efetivamente, diante daquilo que é precisamente e sem rodeios um projeto de dominação global, senão total, os "partidários da diversidade cultural" não têm mais nenhuma margem em sua pesquisa para uma terceira via entre os "suportes da exceção" e os de uma liberalização sem condição dos mercados educativos e culturais. Quando um projeto tão resolvido, maciço e estruturado se apresenta de modo tão claro, há apenas duas soluções viáveis: submeter-se ou opor em resposta (o que é próprio do diversus romano) um projeto de uma clareza, firmeza e de uma vontade equivalentes. "Um projeto", isto é, um conjunto coerente e sistemático de análises, de teses, de fins e de meios que, partilhado por uma mesma comunidade de interesses (no caso, o interesse público e o interesse geral!), é implementado por ela a fim de alcançar os fins que ela estabeleceu. É sobre as características de tal projeto que eu gostaria de concluir..
Um projeto, sim - mas que projeto?
Inicialmente, um projeto teórico. O mais urgente é, de fato, um trabalho de refundação crítica que não se satisfaz em constatar o consentimento internacional de que beneficia o leitmotiv da diversidade cultural para validá-lo, e que exige que esse conceito seja baseado na razão, sem restrição a priori, em todas as suas modalidades e que coloca em prova todas as culturas - particularmente as não ocidentais. Nesse sentido, é preciso também notar que o trabalho em questão já está realizado, no que é essencial, e trata-se sobretudo de reuni-lo e de confrontá-lo de modo contraditório e transdisciplinar, mais do que "refazê-lo".
O número considerável de estudos e de pesquisas realizadas durante as últimas décadas sobre as problemáticas do multiculturalismo, do interculturalismo, do pluralismo, em particular, não pode ser nem apagado nem transposto apressadamente: este deve ser inventariado, sintetizado e confrontado aos questionamentos hoje formulados nos diferentes quadros nacionais, regionais e multilaterais. Então, a diversidade cultural poderá abandonar seu estatuto de evidência positiva a priori, para retomar um hábito que ela não deveria ter deixado, ou seja, o da complexidade e da conflitualidade.
Em seguida, um projeto jurídico. De repente quis-se fazer da diversidade cultural um conceito jurídico - o que ela nunca foi até hoje na história do direito - como se o direito pudesse transmitir-se por sugestão ou por contato... Falou-se rapidamente, desde que o tema da diversidade cultural fez sucesso, em torno do ano 2000, de um "instrumento jurídico" que poderia traduzir os objetivos nas negociações comerciais e jurídicas internacionais. Mas, por não ter simplesmente concordado em pensar um instante em comum nas dificuldades teóricas que seu conceito impunha previamente, desacreditamos sobretudo, num primeiro momento, esta idéia de instrumento jurídico que se esperava pudesse preservar de todas as ameaças e fazer face a todos os males.
Trata-se assim de retomar as coisas ali onde foram negligenciadas, e de ligar de modo irrevogável a abordagem da diversidade cultural a, de um lado, a filosofia, as ciências humanas e sociais e, de outro lado, o direito público, privado e internacional. Trata-se de refazer o laço, e sólido, entre essas abordagens disciplinares que foram ignoradas ou dispersadas, para fazê-las convergir na elaboração de um corpo geral da diversidade cultural capaz de responder às exigências atuais da cena diplomática e comercial multilateral.
Enfim, um projeto político. Como a abordagem jurídica, a reivindicação política da diversidade cultural veio cedo demais, antes mesmo do início de um conceito mais ou menos viável e sustentável junto a administradores privados e públicos dos bens e serviços culturais. Improvisamos uma "política da diversidade cultural" antes mesmo de considerar sua filosofia e seu direito. Desenvolvemos assim uma argumentação a favor da diversidade cultural tingida de moralismo, de bons sentimentos, de tautologias ...e de contra-verdades, enquanto que isso não era necessário e revelava-se contra-produtivo.
Portanto, é preciso aí também retomar as coisas numa ordem que é apenas a da lógica, e que reclama mais por inscrever qualquer política possível da diversidade cultural nas fundações edificadas (com freqüência há muito tempo) pela filosofia, as ciências humanas, sociais e pelo direito. Então, a diversidade cultural poderá tornar-se também esse verdadeiro projeto político que ela não poderia evitar ser, a fim de afirmar, de reiterar a irredutibilidade da grande área educativa, lingüística e cultural na esfera mercadológica, a fim de impor de modo perene sua isenção das regras normativas do direito comercial - a fim de responder traço por traço à estratégia de dominação sem limite das empresas privadas "maiores" por uma estratégia de dominação sem reservas do interesse geral e público.
Notas:
1.Cf. o artigo Diversidade cultural do Dictionnaire critique de "la mondialisation"
2 Julio César: "Diversi pugnabant" (eles combatiam cada um de seu lado), De Bello civili, 1, 58,
3.Salluste : "Diversissimas res pariter exspectare" (esperar de modo semelhante as coisas mais opostas), De Bello Jugurthino, 85, 20.
4.Tácito: "Diverso terrarum distineri" (ser mantido afastado do outro lado do mundo), Annalia, 3, 59.
5. Cf. a mesa redonda Diversidade Cultural, diversidade biológica e desenvolvimento sustentável, realizada em Johanesburgo, em 3 de setembro de 2002.