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Date :  2016-05-03
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O risco de publicar aquilo que muita gente não quer que se publique

O jornalismo foi sempre uma profissão arriscada. De acordo com o Índice Mundial da Liberdade de Imprensa para 2016, regista-se uma diminuição da liberdade de imprensa em todo o mundo, especialmente nas Américas.


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Um jornalista mascarado segura um cartaz que diz em castelhano: “sem liberdade de expressão, cheira a ditadura”, durante um protesto na Cidade do Panamá. Foto AP / Arnulfo Franco.



De acordo com o último Índice da Liberdade de Imprensa no mundo, tornado público no dia 20 de abril, que publica anualmente a organização Repórteres sem Fronteiras (RSF), a liberdade dos meios de comunicação diminuiu a nível mundial. O Índice, que mede o nível de liberdade de que dispõem os jornalistas em 180 países usando como critérios o pluralismo, a independência dos meios, o ambiente mediático, a autocensura, o contexto legislativo, a transparência, as infraestruturas e os abusos, reflete um declive de 3.71% em relação a 2014, e de 13.6% desde 2013.

Vários fatores explicam esta descida. Desde o autoritarismo dos governos à concentração da propriedade dos meios de comunicação, os inimigos da liberdade de imprensa são muitos e não conhecem fronteiras.

As ideologias religiosas, os aparatos de propaganda estatais, os oligarcas e os magnatas da comunicação estão a socavar um dos princípios básicos da democracia liberal – a liberdade de expressão e informação – em todo mundo. Os meios de comunicação são usados para difundir agendas iliberais e audiências massivas e pressionar os governos, os meios de produção e a internet são bloqueados ou suprimidos em diferentes países, aprovam-se leis para reprimir os jornalistas e instaurar um ambiente de medo e autocensura, e a violência a sangue frio usa-se e tolera-se para fazer valer um ponto de vista.

Pecados latino-americanos

Num contexto em que a liberdade dos meios de comunicação está a ser atacado a nível mundial e cada continente vê diminuir a sua pontuação, a América Latina representa um dos piores cenários. De acordo com o Índice dos RSF, a liberdade de imprensa na região caiu um 20.5%.

Existem numerosos motivos que explicam este declive, especialmente na América Latina: tensão política crescente, recessão económica, corrupção, crime organizado e monopólios mediáticos.

A violência institucional é o principal fator em países como a Venezuela e o Equador. Na Venezuela o presidente Nicolás Maduro concentrou os seus esforços em silenciar os meios de comunicação independentes, enquanto que vários meios de comunicação, tais como o “Universal” e a “TV Globovisión”, foram adquiridos por simpatizantes do governo, aumentando assim o controlo do regime sobre o que é (e não é) noticia no país. Além disto, uma lei aprovada em 2010 que limita as críticas que se podem formular ao governo teve como consequência uma serie de detenções arbitrárias de jornalistas e vários processos de difamação. No Equador, o controlo do governo sobre os meios de comunicação aumentou desde que Rafael Correa assumiu a presidência em 2006. Tal como na Venezuela, desde 2013 endureceram-se as condições legais para o funcionamento dos meios de comunicação privados e independentes, limitando desta forma o que os jornalistas podem e não podem dizer, e instaurando um ambiente no qual impera o medo e o acosso.

A delinquência organizada relacionada com o tráfico de drogas supõe a principal ameaça para a liberdade de imprensa na Colômbia e na América Central. Na Colômbia, os jornalistas são muitas vezes os alvos de ataques por parte de paramilitares convertidos em traficantes (conhecidos como bacrims). Os grupos criminais usam a violência como mecanismo habitual para silenciar os meios comunitários, e tendem a sair incólumes devido aos fortes laços que mantem com os funcionários locais. Nas Honduras, o Presidente Juan Alvarado é conhecido pelos seus ataques verbais contra os meios de comunicação, num contexto no qual a ameaça da violência física a jornalistas é uma prática comum, piorando uma situação já em si mesma pouco favorável para a prática do jornalismo. Algo similar acontece no El Salvador, um dos países mais perigosos do mundo, onde os jornalistas feridos ou mortos cada ano são numerosos. Os jornalistas salvadorenhos não só sofrem com frequência o acosso dos funcionários, mas também o do próprio presidente do país, Salvador Sánchez Cerén, quem acusou os meios de comunicação de estar a levar a cabo uma “campanha de terror psicológico”.

No Brasil, o ataque à liberdade de imprensa emana principalmente da corrupção. A mesma nutre a impunidade e isto, tendo em conta que o país carece de mecanismos de proteção para os jornalistas, faz com que o Brasil seja um lugar altamente perigoso para trabalhar. Além disso, a estreita vinculação que existe entre políticos e magnates da comunicação contribui para obscurecer os limites entre a informação e a propaganda. Dilma Rousseff e a sua mais que provável destituição são um bom exemplo disso mesmo.

O país americano melhor colocado no ranking, a Costa Rica, entrou por primeira vez no top dez mundial do Índice da Liberdade de Imprensa no mundo. Uma legislação favorável aos meios de comunicação, a acreditação e adequada proteção dos jornalistas, o acesso à informação e a inexistência de corrupção convertem a Costa Rica num exemplo a seguir por todos os países da America Latina. O país pior classificado enquanto à liberdade de imprensa na América Latina é Cuba, que ocupa o número 171 do índice.

A terra dos cartéis

Menção especial merece o México, o país mais perigoso do mundo para os jornalistas e um dos que regista os níveis mais altos de criminalidade impune contra a imprensa, de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ). 120 jornalistas foram assassinados no México nos últimos 25 anos. No que levamos de 2016, cinco jornalistas já perderam a vida: Moisés Dagdug Lutzow, Anabel Flores Salazar, Reinel Martínez Cerqueda, Marcos Hernández Bautista e Francisco Pacheco Beltrán. De acordo com a Comissão Nacional de Direitos Humanos do México, o estado mais perigoso para os jornalistas é Veracruz: 15% dos assassinatos registados desde 2000 tiveram lugar neste estado.

A maior ameaça para os jornalistas mexicanos são os grupos criminais. Quando a imprensa não aceita as exigências de cobertura favorável por parte destes grupos, tendem a produzir-se episódios de violência e morte. Apesar de que a responsabilidade direta do estado em dita violência é discutível nalguns casos, a sua incapacidade para investigar a imensa maioria deles, que ficam por esclarecer, favorece um ambiente de impunidade e de medo.

Deve reconhecer-se que esta tragédia é um sintoma de que algo está a correr mal na democracia mexicana. A violência contra jornalistas indica que a corrupção e a impunidade são um fator comum no país e que o governo está a falhar claramente chegada a hora de lidar com a situação. A terra dos cartéis de droga é um caso paradigmático que demonstra que a democracia é muito mais que só cartões de voto e governos.

Macri e os monopólios

Existem, contudo, outros mecanismos não violentos – ou não, declaradamente violentos – que limitam a liberdade de imprensa na América Latina. Na Argentina, por exemplo, o grau de concentração do mercado no setor dos meios de comunicação é muito alto (quase 40% da televisão está controlada por dois grupos, de acordo com Martin Becerra) e o papel dos meios na conformação da opinião pública dista muito de ser politicamente neutral. A Lei de Meios de Comunicação aprovada em 2009 pretendia fomentar o pluralismo e evitar monopólios. Maurício Macri, contudo, nos seus primeiros dias no cargo, apressou-se a revogar a lei através dum decreto de emergência.

O uso por parte de Macri deste recurso extraordinário para modificar uma lei que foi desenhada para fomentar a liberdade de expressão e democratizar o ecossistema dos meios de comunicação argentinos é alarmante: o decreto dissolve os organismos reguladores dos meios de comunicação (AFSCA) e de Telecomunicações (AFTIC) e substitui-os por um só ente controlado pela maioria oficialista.

O chefe de gabinete de Macri declarou que isto marcava o “fim da guerra contra o jornalismo”. Tratasse exatamente do oposto: a revogação da Lei de Meios de Comunicação levará a uma maior concentração de meios de comunicação num país onde a posição de domínio do Grupo Clarín já se encontra entre as maiores do mundo. A expansão ulterior de dito Grupo supõe, obviamente, uma grave ameaça para a liberdade de expressão na Argentina.

Este é, sem dúvida, um mecanismo diferente ao usado no México para obter o mesmo objetivo: limitar a liberdade de imprensa. Trata-se dum mecanismo não-violento no sentido em que não se produzem execuções a sangue frio, e os jornalistas arriscam os seus postos de trabalho em vez da vida. Os resultados, contudo, são parecidos: a difusão do medo e da autocensura, obstaculizar o interesse público em benefício das empresas, indivíduos particulares, dirigentes e partidos políticos.

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Quiosque na Lexington Avenue em Nova Iorque, 1997. Foto AP / Rosario Esposito.



Defender o jornalismo e a democracia

Depois duma década de prosperidade económica e das melhoras nas políticas sociais, num momento como o atual, crucial para as democracias latino-americanas, a necessidade de fortalecer a liberdade de imprensa na região é particularmente urgente se a América Latina quer consolidar as suas instituições democráticas. Neste sentido, proteger os jornalistas e garantir espaços de discussão e reflexão pacíficos, livres e independentes é chave para o progresso da democracia na região. Que é a democracia senão cidadãos bem informados, marcos apropriados de debate livre e aberto, e governos que prestam contas?

No prólogo proposto para Animal Farm, George Orwell refletia sobre a natureza da liberdade de imprensa naquele então (1945), mas os seus comentários são incrivelmente atuais. “Quem desafia a ortodoxia imperante”, escrevia, “é silenciado com uma eficácia surpreendente. Uma opinião que não se adeque à moda quase não recebe atenção, tanto na imprensa popular como nas revistas intelectuais”. A cobardia intelectual, dizia também Orwell, é o pior inimigo dos jornalistas.

Enfraquecer a liberdade de imprensa obviamente deteriora a saúde das democracias latino-americanas. E à maioria dos atores, de todos os setores do espetro político, parece que não lhes convém reconhecê-lo. Certamente não está de moda hoje, na América Latina, discutir a situação da liberdade de imprensa. Os predicadores políticos estão ocupados a debater se o ciclo está, ou não, a chegar ao seu fim, e procurando os culpados do declive económico da região.

Contudo, se a América Latina quer evitar cair no que se considera uma democracia de baixa qualidade ou pior, os jornalistas devem ser protegidos do acosso violento e não-violento, tanto por parte dos governos como dos interesses privados. Se temos em conta a afirmação de Orwell de que “se a liberdade significa alguma coisa, é o direito a dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”, e que a raison d'être do jornalismo é “publicar aquilo que muita gente não quer que se publique”, é evidente que para ser sãs e vigorosas, as democracias latino-americanas devem garantir que não haja nada sobre o que os jornalistas não possam falar, nada que não possam investigar e nada que não possam dizer. Lamentavelmente isto não é o caso – exceto na Costa Rica.

De momento, os jornalistas latino-americanos, e através deles as sociedades que deveriam informar, estão a ser atacados.

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