Um "programa" em dez pontos que parece ser sem dúvida "político", mas que não terá o senso de uma nova ideologia partidária. Ele terá o duplo conceito de Politeia e de Politikon, criados por Platão e Aristóteles com suas comunidades de espíritos e suas controvérsias. Isso quer dizer que, qualquer que seja, a pesquisa do governo terá como objetivo o melhor para a cidade os cidadãos.
O que está em jogo aqui é a discussão com o cidadão de um "fenômeno" que, conforme lhe foi explicado, ele subverte e que vai subverter mais ainda a sua vida (para melhor e para pior), mas que não o prenderá de maneira concreta. Isso porque "a mundialização" não deve ser vista como uma catástrofe climática ou uma alma divina. E aqueles que a apresentam apenas como "um fato", o fazem somente para impor uma certa concepção exclusiva e uma espécie de prática privativa da mundialização – e que não querem, sobretudo, que os cidadãos se intrometam! Presa a essa prática privativa (o que tem finalidade principalmente política e econômica) a mundialização continua a ser isso que ela é: um assunto multiforme, complexo, evolutivo, instável e irredutível a um simples "fato", um verdadeiro modo de pensar para ser, por fim, captado em sua verdade sob diferentes espécies. Isso não é simples – e muito menos exigente.
A proposta colocada em perspectiva deve ter como primeiro efeito restringir a difusão do conceito polêmico de "mundialização" e introduzir no debate atual aquele das mundializações. Por que? Porque evocar "a mundialização" não apenas restringe o campo de compreensão, como ainda afirma a idéia de que nós podemos deter as chaves de um determinado fenômeno, que será "bem conhecido" e que cada um supostamente conheceria – negligenciando a observação de Hegel em Fenomenologia, que diz: "o bem conhecido, exatamento por ser bem conhecido, não é conhecido". Nesse caso, o "bem conhecido" que ocupa a cena sem ser portanto "esclarecido", produzindo "sentido" e cada vez mais confusão, eu colocaria em oposição ao "mal conhecido" - as mundializações – principalmente porque sobre elas há quase tudo para ser descoberto e compreendido. As mundializações são uma multiplicidade de processos em curso que tocam os domínios mais variados, com ligações e características intrinsicamente complexas. Há "degraus" bastante diferentes, sendo que o "senso comum" - se há um – ainda não é acessível e exige o trabalho de dúvidas cartesianas mais do que suspeitas nietsheanas no lugar de certezas e ideologias.
O trabalho de distinção precedente não é somente "desejável" em um plano científico – ele é também indispensável no plano político ? Com isso, não será preciso pegar o leitmotv "mundialização" apenas como a aproximação de uma linguagem, uma simplificação inevitável justificada pelas regras da palavra mediática, em que cada um é um pouco responsável e que, no fundo, não seria grave. Ao contrário, "a mundialização" deve ser compreendida como um conceito instrumental a serviço de certas causas – um conceito que designa certa concepção privada do mundo, um mundo que será "assim" e irá em uma determinada direção… "A mundialização" explícita, colocada em cena, orquestrada por um número de "líderes de opinião" se revela uma máquina ideológica em que a propagação voluntária serve para garantir ou denunciar uma visão simplista e bastante "orientada" do movimento do mundo atual: para uns uma visão positiva, apológica (os benefícios da mundialização); para outros, uma visão negra e apocalítica (as consequências negativas dessa mesma mundialização).
É a consequência que se precede. O simplismo que fez do debate atual uma pele de desgosto em que o assunto mais confuso é sempre "a mundialização" provocou também em seu impulso de formação uma moral binária e empobrecedora. Por essa moral, forjada normalmente por aqueles que nós nomeamos de "partidários" e "adversários da mundialização", não é importante apenas saber se ela é "boa" ou "má" (levando sempre em consideração o princípio não explícito de que ela é "conhecida"). Algumas vezes, guiado pela preocupação aparente de se introduzir uma nuance a essa oposição, chega-se ao ponto de sugerir a distinção da "boa e a má mundialização", mas os critérios usados continuam os mesmos. A difusão universal de uma moral também sumária deveria ser objeto de uma crítica, pois ainda não medimos o seu caráter devastador – em particular para a moral dos cidadãos e desse distanciamento do político que nós censuramos. Enfim, "a mundialização boa ou má" não pode ser apenas objeto de uma guerra interminável entre prós e contras (como Guelfes e Gibelins, Capuletos e Montéquios, etc ).
Esse ponto é claramente ligado ao precedente. Como fugir do simplismo da "mundialização"?. A princípio, se interessando pelas mundializações em sua diversidade, que não pode de maneira alguma ser reduzida a um motivo de guerra. Como poderemos ser a favor ou contra as mundializações do direito – e principalmente dos direitos do homem -, da pesquisa científica, da práticas democráticas? Vemos bem que essa postura não tem sentido: a complexidade, a riqueza de sentidos que gera o conceito de mundializações capta a reflexão e evacua o moralismo da cena. Não podemos ser mais "contra ou a favor das mundializações" do que contra ou a favor da educação, das ciências e da cultura. O que importa é não mais se pronunciar a todo preço sobre "a mundialização", e sim estudar em sua pluralidade e de maneira também plural (por exemplo do ponto de vista de disciplinas como história, antropologia, filosofia, sociologia, etnologia) os processos de mundialização em obra em quase todos os domínios: desde as indústrias culturais até as lutas ambientais, dos hábitos de vestuários até os processos dos crimes contra a humanidade. Se aproximar dessa forma de mundialização liberada de tudo a priori, estudá-la, compará-la, pesquisar suas causas comuns e distintas, avaliar suas consequências convergentes e contraditórias, validar ou invalidar as interpretações múltiplas que elas suscitam: se há alguma parte "urgente" - esse guia, em geral desajeitado – ela está aqui.
A visão estática que conceitua a "mundialização" como um "fato" não é sustentável, pois tudo no processo segue a ordem de uma dinâmica. É um movimento que nós não podemos de maneira alguma compreender se nos contentamos em esfria-lo. É preciso se interessar por sua dimensão histórica, saber que os homens (porque os "NTIC" são homens, e não máquinas) favoreceram, ou então "criaram" esse movimento, e procuram os meios de seu desenvolvimento. Quais são suas motivações e onde estão seus desejos - em uma palavra: "O que é que movimenta "a mundialização"?" Por exemplo, diante da "mundialização das indústrias culturais", que se manifesta por uma concentração rápida de atividades editoriais (imprensa, literatura, música, audiovisual), uma rarefação da criação e da oferta publicada (de "produtos") e uma normalização internacional das práticas culturais. Não adianta apenas dizermos que isso é bom ou mau. É preciso ainda situar um determinado processo na história, avaliar suas origens, identificar seus motores e atores principais, restituindo o movimento, colocando em dia o senso e projetando de maneira racional (e não apenas emocional) as últimas conseqüências .
Se torna imperativo sair da ideologia moralizante atual: tanto daquela que rejeita quanto daquela que venera. E isso não é simples, pois as regras do debate presente, regras forjadas em comum pelos "anti" (mundialização) e pelos "pró" não autorizam quase nada para os que estão de fora – o que é próprio de toda moral binária, seja ela de essência religiosa ou laica. A questão não é mais sabar se "a mundialização" é "boa ou má", mas saber quem mundializa, como e por que ? O que significa pesquisar e compreender :
- qual grupo (científico, intelectual; tecnocrata, empresarial, financeiro, político, etc) é a origem de cada processo de mundialização (por exemplo a mundialização da edição fonográfica ou pedagógica);
- quais são os fins (explícitos ou obscuros) seguidos por aqueles que desenvolveram esse processo, o favoreceram e o encorajaram – finalidades privadas ou públicas, comerciais, científicas, humanitárias…;
- quais meios (técnicos, políticos, financeiros, comerciais…) eles utilizaram para sua promoção e difusão.
É apenas por meio de uma investigação crítica que nós vamos sair do impasse atual e conseguiremos formar uma julgamento "extramoral" (para utilizar novamente uma catagoria nietzchiana) sobre esse assunto de polêmica quotidiana.
Poucos assuntos de sociedade na história contemporânea geraram tantos fantasmas negativos e positivos como a “mundialização”. Logo, é um bom momento para descer do reino dos sonhos e retornar ao da política – esse que faz a Cidade, esse que tem como objetivo um melhor governo para todos. Para fazer uma analogia, se tentamos por um instante nos colocarmos no lugar daqueles que assitiram ao nascimento da impressão em papel, é preciso tentar ( sem urgência ou medos partidários) desatar pacientemente e tirar um a um todos os nós do processo que se passa diante de nosso olhos, sem focar de maneira exagerada certas conseqüências ( como o desaparecimento dos funcionários que faziam seguir a divulgação da gráfica, por exemplo). É preciso evitar se deixar impressionar pela árvore que esconde a floresta das conseqüências múltiplas das mundializações. Certamente, isso é mais fácil dizer que fazer!, pois o imediatismo de fatos tão complexos como os que os assistimos criam uma distância crítica e uma “antecipação racional” perigosa para que possamos executar algo… Mas, qualquer que seja a dificuldade, parece que não teremos muita escolha!
Eu acredito também que é preciso evitar reduzir "a mundialização" à sua pura dimensão comunicacional - evidente, muito evidente! "Mundialização", essa não pode ser somente de comunicação mais fácil e rápida, como outra do fim do mundo - e isso não contrói a civilização. Ao contrário, prestar atenção a essa distinção permite efetivamente reencontrar a idéia da civilização: aquela de uma mundialização que seria civil, pois seria outra coisa que a comunicação e o comércio facilitados pelos homens. Para responder aos interesses hoje propostos, me parece que é preciso ultrapassar a ilusão técnica ordinária: porque não é a imprensa que "faz o Renascimento", é somente uma certa apropriação da imprensa (uma certa prestação de serviço do homem) que contribui para esse processo chamado "Renascimento". Igualmente, se os técnicos que contribuíram há alguns anos com a explosão da circulação das informações não podem ser considerados como produtores por si mesmos de uma nova civilização, eles podem ser colocados a serviço de um determinado projeto - mas um projeto ao qual ele vai dar forma é senso com uma vontade propriamente política.
Considerações finais:
Para reagir à questão que essa mesa redonda deve revelar, eu diria que “a lei do mais forte” não está necessariamente em um plano normativo em que se pensa espontaneamente: "a mundialização" dos mais fortes esmagará os mais fracos. Eu acredito que se "a mundialização" é atualmente vista como um assunto de dominação, e sem minimizar a importância de todas as formas de dominação “reais” que podemos observar (econômicas, políticas, militares, financeiras, lingüísticas, culturais, etc.). Ela utiliza o conceito inicial de dominação que lhe é dado por aqueles com se dizem “contra” ou “a favor” da mundialização.
“A lei do mais forte”, apesar de não estar certo que ela seja ainda ultrapassada, apesar da invasão da questão no espaço da mídia ( e aqui mesmo), não é nada mais que a lei daqueles que dizem o que deve ser "a mundialização”: uma coisa boa ou má e que deve ir em um sentido ou outro. Uma coisa em que os partidários e os adversários se reúnem para se apropriar conforme sua visão geral do mundo e seus interesses – propriamente enocômicos, políticos e intelectuais. “A lei do mais forte da mundialização” é também aquela de quem fala mais alto, seja nas asembléias da OMC, do Banco Mundial, do FMI ou nas ruas de Seatle, Bangkok ou Praga, afim de convecer que sua visão do mundo é a melhor. Mas é pouco provável que possamos encontrar um fim pacífico para essa controvérsia mundial que não pára de crescer: simplesmente, talvez, porque ela continua somente no terreno da dominação e que nunca é colocada em perspectiva com o aprofundamento de argumentos que necessitaria.
Então, diante dessa situação de impasse, qual poderá ser a solução?
Da minha parte não vejo outra além de uma iniciativa coletiva que restituirá de maneira voluntária e racional (e não mais emocional) a questão da mundialização no campo da divisão – e não mais no da dominação. Situar a mundialização no campo da divisão não quer dizer manifestar uma ingenuidade angelical sobre as virtudes benéficas que aconteceriam diante dos nossos olhos. É simplesmente dizer que se é claro para cada um que esse assunto engloba o destino de todos, não podemos nos dar ao luxo de agir de forma trivial. Por outro lado; essa “coisa” se manifesta por um grande números de fatores que podem, de maneira crescente, ser a razão da divisão suscetível também de fazer progredir a Cidade comum. Não se pode também ficar perturbado com o fato da mundialização recente em acontecimentos da “política interior” na Iugoslávia parecer ter contribuído amplamente para evoluir a atual situação para o sentido que conhecemos. Podemos unicamente ficar impressionados pelos esforços que são vistos em todas as regiões do mundo para interromper ou conter guerras civis, religiosas, étnicas e, encontrar, acima de tudo, na base das contribuições internacionais, soluções (e um “acompanhamento”) elaboradas a longo prazo. Podemos ser apenas sensíveis à multiplicação recente de iniciativas internacionais de aproximação e cooperação (mesmo fora do contexto político) nas áreas pedagógicas, científicas e universitárias.
Logo, todo esse processo de mundialização nas conseqüências iniciais é tambem precisamente da ordem de divisão, sem ser reduzido a uma ideologia, a um clan, a interesses privados, exclusivos. É, então, inspirando-se em tais assuntos contemporâneos, refletindo sobre eles e não apenas os vendo como “fatos”, que poderemos, utilizando valores totalmente diferentes, reorientar “a lei do mais forte na mundialização” para o sentido do interesse geral. Algo que não é dado na entrada mas que podemos observar em múltiplos traços que parece nao estar desprovido de chances de vencer no fim, para dar razão póstuma à idéia cosmopolítica kantiana. É preciso talvez que "a mundialização" deixe de ser uma coisa evidente – muito evidente para alguns – e se transforme novamente em uma questão: a questão de uma futuro comum para construir e dividir.
(Outros artigos sobre esta mesma problemática ou temas ligados foram redigidos pelo autor e estão disponíveis no Dicionário crítico : Mundialização)