Como se imaginaria um poeta bíblico? Provavelmente como alguém de olhos brilhantes, barba negra, a vociferar - dedo em risque e jugulares túrgidas - ameaças contra pecadores e acomodados. Noam Chomsky, que foi a grande presença intelectual no Fórum Social Mundial, não poderia estar mais distante dessa imagem clássica: é um homem pequeno, magro, de expressão melancólica, voz baixa contida - um pouco parecido com Woody Allen, até. Mas ele faz parte, sim, de uma linhagem profética, aquela linhagem que tem em Amós e suas ameaças contra os "que dormem em leito de marfim" (Amós 6) um exemplo muito típico. Essa linhagem não se limitou à época bíblica; projetou-se através do tempo, chegou a nossos dias, expressando-se naquilo que o próprio Chomsky denomina de "judaísmo radical". Cuja trajetória, é preciso dizer, representa uma tragédia da humanidade. A história de um desencontro entre a esperança e a realidade.
Nascido em 1928 na Filadélfia, Noam Avram Chomsky é filho de emigrantes judeus vindos da Rússia. Seus pais fizeram parte daquela onda migratória que, em fins do século 19 e começo do século 20, deixou o império czarista em busca de uma vida melhor na América. Tinham motivos para isso. Confinados em pequenas aldeias, os judeus da Europa Oriental viviam em pungente miséria e sob a contínua ameaça de extermínio físico; eram os bodes expiatórios, as válvulas de escape para as convulsões sociais freqüentes numa região de espantosa desigualdade - uma desigualdade que teria como direta conseqüência a Revolução Russa de 1917. À pobreza e as ameaças os judeus reagiam de diferentes maneiras. Muitos refugiavam-se, conformados, na religião (ou no humor judaico). Outros, como foi dito, deixaram seus precários lares e emigraram, cruzando o Atlântico naqueles navios de emigrantes retratados pelo pintor brasileiro Lasar Segall. E finalmente havia aqueles que buscaram no nascente movimento socialista a emancipação prometida pela modernidade. O socialismo representava a materialização dos grandes ideais de justiça e solidariedade, ideais com os quais os judeus estavam familiarizados através das visões do profeta Isaías.
Muito cedo judeus estavam na linha de frente da militância, a começar pelo próprio Karl Marx, judeu convertido, que, no entanto, nunca esqueceu as suas raízes. A relação de Marx com o judaísmo era ambivalente, o que aconteceu com muitos dos seus seguidores judeus. Um exemplo é o escritor Isaac Babel (1894 - 1941). Filho de um comerciante judeu de Odessa, Babel aderiu muito cedo aos Bolcheviques e combateu na chamada Cavalaria Vermelha formada por cossacos (conhecidos ironicamente pelo anti-semitismo). Babel relembrou essa experiência em numerosos contos. Em O Filho do Rabino, ele fala de um moribundo combatente judeu, em cuja mochila o narrador encontra folhetos de propaganda comunista, o Cântico dos Cânticos e balas de revólver.
Os judeus estavam na liderança do movimento bolchevique, a começar por Leon Trotsky. Que, no entanto, rebelou-se contra a liderança de Stalin e teve defugir para o México, onde foi assassinado. O stalinismo olhava com suspeição aquilo que era chamado de "cosmopolismo" judaico. Isaac Babel acabou morrendo num campo de concentração - e não foi o único. O sonho socialista judaico na União Soviética, junto com muitos sonhos e ideais, caiu por terra (que o Muro de Berlim tenha caído também não chegou a servir de consolo para aqueles que, pelo sonho, sacrificaram sua juventude e suas vidas). Mas as idéias socialistas mantiveram-se vivas; levadas pelos emigrantes que dirigiam-se para a antiga Palestina, deram origem aos antigos Kibutzim, colônias coletivas. Na América, por outro lado, foram uma das sementes para o movimento sindical. Mas a existência judaica nos Estados Unidos se diversificou. Os filhos dos operários tornaram-se intelectuais, profissionais liberais, empresários muito bem sucedidos. Ou seja: no judaísmo há de tudo. A "conspiração judaica", tão cara aos anti-semitas, envolveria Marx e Rotschild, ativistas e banqueiros. Tudo bem: preconceito sempre foi surrealista.
Na vida e na carreira de Chomsky, o judaísmo desempenhou um importante papel. Seu pai era um notável conhecedor do idioma hebraico e alguns dos primeiros estudos lingüísticos que realizou - os estudos que o tornaram famoso - giravam, exatamente, em torno da estrutura do hebraico. A lingüística, por outro lado, introduziu-o ao socialismo: seu professor e mentor, na Universidade de Pensilvânia, Zellig Harris, era conhecido pelas idéias esquerdistas e influenciou consideravelmente o jovem Noam. Que não renega suas origens judaicas. Ao contrário, fala delas com muita emoção, como podemos constatar nas (raras) conversas informais que pôde manter aqui em Porto Alegre, no intervalo de sua sobrecarregada agenda. Quis saber da comunidade judaica no Estado e interessou-se muito pelo projeto de colonização agrícola que trouxe os judeus - da mesma região de seu país - para o interior do Rio Grande do Sul.
Essa emoção, porém, não chega a contagiar o Chomsky intelectual. O que caracteriza o seu discurso é, antes de qualquer coisa, a coerência implacável. Como o Amós bíblico, ele denuncia as injustiças do capitalismo e os erros da política externa dos Estados Unidos. Pelo que paga um preço. Muitas vezes tem sido boicotado. Quando o dono de uma empresa editorial soube que um de seus editores havia publicado um livro de Chomsky, mandou recolher e destruir todos os exemplares. O The New York Times não aceita seus artigos - nem mesmo suas cartas. Chomsky é considerado um radical e a sua linguagem é a de um radical. No livro "11 de Setembro", que vem de ser lançado no Brasil pela Bertrand, fala nos "assassinatos políticos cometidos por Israel contra os palestinos", o que é no mínimo uma pesada generalização. Israel é um país onde vivem milhões de pessoas, muitas das quais são tão contra guerra como Chomsky. Recentemente, militares se recusaram a desenvolver ações armadas nos territórios palestinos.
A generalização é própria da retórica radical, para o qual só existem os extremos. Mas já estava presente nas palavras dos profetas, nos textos de Marx e nos discursos inflamados dos líderes comunistas judeus. Ou seja: Noam Chomsky é parte, sim, de uma tradição. Uma tradição da qual podemosdiscordar, mas não podemos deixar de admirar.
Moacyr Scliar