A respeito do estágio atual do processo da Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais da Unesco (1) e do papel que a sociedade civil deveria assumir a seu respeito, apresento algumas “considerações inatuais” (Nietzsche), intempestivas (bis) e, afinal de contas, desagradáveis.
Inicio, portanto, resumindo meu ponto de vista com quatro conceitos que me parecem suscetíveis de se revelar tão decisivos quanto organizadores. Estes quatro conceitos são: invenção, mobilização, avaliação e controle. Mas, o que significam?
1. Invenção:
Primeiro ponto: certamente, esta convenção “existe” — mas falta inventá-la!
Em termos nietzscheanos, mas também freudianos: ela deve “tornar-se o que ela é”. Ou seja: trata-se de passar de um texto consensual — amável e ecumênico — para um projeto dinâmico. Ora, isto está longe de acontecer, e menos ainda: de ser conquistado! É por isto que a sociedade civil tem um papel crucial a desempenhar nesta questão. Efetivamente, o laisser-faire crônico dos Estados e do sistema multilateral ameaça a Convenção de esterilidade, se ela não continuar a ser promovida com obstinação, especialmente pela sociedade civil, e se ela não começar a ser colocada em prática energicamente por aqueles que a ratificaram. De fato, mesmo a sociedade civil não sendo “Parte” na Convenção (num plano estritamente jurídico), ela deve dar substância à sua implementação, à sua tradução no terreno instável das políticas culturais, educativas e sociais. A sociedade civil deve praticar: i) uma “auto-implicação” e ii) uma implicação das partes oficiais(2) sobre todos os temas que justificam um recurso à Convenção. A sociedade civil também deve suscitar a criação de ferramentas (de informação, de explicação, de utilização) da Convenção, bem como sua difusão por todos os meios. Ela deve contribuir para a criação de módulos de ensino e de formação nessa matéria(3). Ela deve, finalmente, contribuir para a “criação de sentidos” a favor desta Convenção que muitas vezes parece ser, justificada ou injustificadamente, mais um dos milhares de gestos burocráticos desprovidos de efetividade (de Wirklichkeit).
De certo modo, a sociedade civil deve inventar ao mesmo tempo: i) um partilhamento dessa Convenção sobre seu conteúdo, sua legitimidade e suas finalidades, mais do que sobre sua forma, e ii) uma implementação muito mais audaciosa e criativa do que a prática que dela farão as partes que a ratificaram.
2. Mobilização:
A respeito deste outro ponto-chave, apesar de todas as redes que existem há muito tempo, e de seu bom funcionamento (Coalizões para a diversidade cultural, RIDC, RIPC etc.), e ao contrário do sentimento comum, ainda não se chegou ao ponto!
De fato, não apenas é preciso mobilizar os “retardatários” para ratificar a Convenção rapidamente, em massa e completamente, vencendo os obstáculos nacionais que não faltam em lugar algum(4), mas também não se deve aderir à retórica utilizada por uma agenda diplomática “forçosamente longa” para um instrumento jurídico dessa natureza, que nos pede que consideremos como já “muito curta” e não podendo ser mais acelerada…
Em seguida, é preciso contribuir para mobilizar mais amplamente atores insuficientemente presentes, atualmente, no processo de implementação da Convenção, a saber: i) “as regiões”, em todos os sentidos políticos e administrativos do termo(5); ii) a comunidade acadêmica e científica, que desconfia por princípio desse tipo de acordos internacionais, e iii) os sindicatos, que, com exceção dos sindicatos profissionais especializados (especialmente do setor audiovisual), foram insuficientemente sensibilizados sobre o conteúdo e os objetivos da Convenção.
Finalmente, a mobilização deve assumir outras formas além dos grandes eventos nos quatro cantos do mundo que fazem da apologia da diversidade cultural a finalidade de todas as coisas... Ela deve centrar seus esforços (em complemento ao que já foi dito acima sobre a “invenção” nessa área) sobre a difusão das ferramentas pedagógicas(6), a multiplicação das carreiras do ensino e das formações específicas em matéria de diversidade das expressões culturais. E esta mobilização deve ser realizada em conjunto com atores da sociedade civil, das Universidades e da formação profissional.
3. Avaliação:
Esta palavra costuma dar medo, pois ela remete a uma burocratização do mundo (e da União Européia, em particular) de que já sofremos e de que sofremos todos, uns mais outros menos. E no entanto…
Como não devemos esperar que as próprias partes da Convenção avaliem a si mesmas, nem que a Unesco o faça(7), resta pelo menos fazer reconhecer que a sociedade civil e a comunidade acadêmica têm alguma legitimidade para conceber e para realizar a longo prazo uma avaliação dessas… Ainda mais que, se elas não o fizerem, está bastante claro que os inimigos da Convenção — que não deixam de ter um certo poder de fogo, mesmo se eles não são numerosos — não hesitarão em organizar um exército de consultores privados e naturalmente “independentes”, prontos para elaborar os diagnósticos mais improváveis em matéria de diversidade cultural(8)…
Portanto, a sociedade civil deve ser não apenas o provocador da Convenção e da sua avaliação, mas também seu principal vetor. Quaisquer que sejam as formas, elas próprias diversas e plurais, assumidas por esse processo organizado de avaliação, a sociedade civil deve ser ao mesmo tempo seu lugar de coleta de dados, de arquivamento, de inventário, de comparação, de validação, bem como de diagnóstico transdisciplinar e contraditório.
Será que é preciso falar, neste ponto, de mutualização dos meios e métodos de avaliação, de uma estrutura de coordenação transnacional e transdisciplinar para tudo o que diz respeito a um processo desse tipo? Seja como for, deve tratar-se de: a) uma dinâmica e ferramentas não burocráticas; e b) uma capacidade – também aqui — de invenção sustentada e sustentável(9).
Finalmente, a avaliação da implementação da Convenção pode ser concebida ao mesmo tempo como o que falta a priori e como o que não deve faltar de forma alguma a posteriori.
4. Controle:
Mesmo quando aplicado à diversidade das expressões culturais, e à implementação da Convenção que lhe diz respeito, o “controle” surge inicialmente como um outro conceito desagradável e pouco popular, pois ele parece remeter sempre à idéia de “polícia”… que pode às vezes revelar-se necessária! De fato, é legítimo estimar que o controle de que se trata aqui só será efetuado seriamente se a sociedade civil, em estreita parceria com a comunidade acadêmica, se dedicar a ele com vontade.
Por quê? Porque os Estados e as instituições multilaterais buscam, por princípio e tradição, o consenso, e que em matéria de diversidade cultural, mais do que na área do meio ambiente, este consenso só pode ser fraco e perigoso. Porque os temas tratados dizem respeito às “identidades” ou “integridades” nacionais, e já conhecemos a mediocridade e o perigo desse conceito.
É também porque o controle que aqui defendo se situa em oposição a todo consenso a priori: ele se quer pró-ativo e nem um pouco limitativo. Não se trata de um novo “controle de polícia”… mas de um controle da manutenção em vida, da vitalidade e do dinamismo da Convenção da Unesco, de sua efetividade, de seu papel, de sua pertinência e, finalmente: de sua utilidade!
Intimamente ligada ao processo de avaliação precedente, o controle levará todos os Estados membros e todos os outros atores implicados a cumprir seus deveres e a assumir suas responsabilidades em matéria de diversidade cultural. Trata-se, portanto, de um controle que vai dinamizar o processo da Convenção, que vai aprofundar e ampliar sua razão de ser.
5. Conclusão:
Invenção, Mobilização, Avaliação, Controle: estes quatro imperativos não forjam um slogan fácil, uma receita de bolo… Eles são, ao contrário, os quatro pilares necessários para que o edifício complexo e frágil da Convenção da Unesco não desabe logo depois de ter sido construído e “ratificado”.
A prova da utilidade dessas quatro missões é que atualmente poucas pessoas se preocupam realmente com:
i) a invenção não parece ser ou não parece mais ser um tema atual, já que se obteve um texto amplamente consensual, e ao qual não resta mais do que se acomodar;
ii) a mobilização já saiu de moda, pois supõe-se que ela já rendeu os frutos que tinha a dar!
iii) a avaliação é mal vista, tanto pelos encarregados de projetos, que sofrem no cotidiano as dificuldades impostas (pelos “financiadores”), quanto pelos governos, que não querem de jeito nenhum ser avaliados por terceiros;
iv) o contrôle é não apenas suspeito a priori, mas também forçosamente percebido como uma intrusão, uma regra excessiva.
Entretanto, são justamente essas quatro tarefas que a sociedade civil deve assumir agora e sempre, devido a pelo menos três razões bastante claras:
v) a primeira razão é que ninguém mais o fará…;
vi) a segunda é que se elas não forem assumidas, e apesar da sua ratificação, a Convenção da Unesco se tornará rapidamente “nula e sem sentido”;
vii) a terceira é que, ao contrário, se elas forem verdadeiramente assumidas, a Convenção é suscetível de dar resultado e de cumprir as promessas (certamente excessivas, mas consideráveis) de que ela foi investida.
Finalmente, e acima de tudo, essas tarefas têm como denominador comum, de não considerar a i<>Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais como uma conquista e uma realização irreversíveis, mas como uma dinâmica e um projeto que anda falta configurar e levar ainda mais longe.
Notas :
(1) Instrumento jurídico internacional cujo: i) a importância futura foi formulada pela Conferência geral da Unesco desde a Declaração Universal de 2 de novembro de 2001; ii) processo de negociação de um projeto de texto foi lançado pela Conferência geral seguinte, em outubro de 2003; iii) texto definitivo foi adotado pela Conferência geral de outubro de 2005; finalmente, cuja iv) entrada em vigor é efetiva desde 18 de março de 2007, ou seja, três meses após ter sido atingido o patamar de um mínimo de 30 ratificações por membros da Unesco.
(2) Ou seja, os Estados membros da Unesco, bem como as organizações de integração econômica que ratificaram a Convenção.
(3) Como, por exemplo, o “Master em diversidade cultural” iniciado em 2004 pela Universidade Tres de Febrero de Buenos Aires. Mas também como as ferramentas desenvolvidas pelo GERM para permitir uma melhor apropriação dos desafios da diversidade cultural em geral, e projetos que se seguiram à Declaração de 2001, bem como à Convenção de 2005, particularmente. Cf. a este respeito: i) o site Web www.mondialisations.org, sua rubrica Diversidade cultural, rica de mais de 1300 documentos ; ii) o documentário disponível em DVD “Dançar a música do Outro” (26’, quadrilingue), ou iii) o CDRom “O Som da diversidade” (trilingue, 73’), concebidos e colocados à disposição gratuitamente pelo GERM.
(4) Obstáculos levantados seja na “Câmara alta”, seja na “Câmara baixa” de tal ou tal país, em função da História e do direito nacionais… sem omitir, é claro, as implicações econômicas e os acordos de livre-comércio assinados recentemente, como por exemplo pelos Estados da América central, o Marrocos ou a Coréia..
(5) É este o sentido dos Encontros interegionais organizados pelo GERM e a Região Rhône-Alpes em setembro de 2006 com o título “Regiões e diversidade cultural: uma dinâmica européia e mundial”, bem como a Declaração de Lyon que dele resultou, e que está disponível (em cinco línguas) no endereço : http://www.mondialisations.org/php/public/art.php?id=24848&lan=FR
(6) Explicitação da diversidade cultural, de suas acepções e desafios, da Declaração universal de 2001, da Convenção de 2005, de sua pertinência respectiva, de sua história, de sua utilização possível…
(7) Desde, infelizmente!, a retirada (na primavera de 2005) do ante-projeto de Convenção: do projeto de um Observatório que teria avaliado sua implementação efetiva.
(8) Começando – por que não? – por definições da “diversidade das expressões culturais” em contradição com as conquistas do “processo Unesco” desde 2001, bem como por um aparelhamento estatístico novo e, no mínimo, incompáravel, à carta…
(9) Graças ao financiamento ad hoc, à implementação e à perenidade das ferramentas, se não das instituições criadas.
Tradução : Giselle Dupin
Artigo publicado em Economia della Cultura, 2008, n°1 (janeiro), pp.57-61, il Mulino, Bologna (Tema do dossier : "Consumi culturali e creativita del gioviani"). - Comunicação na Conferência "Diversidade cultural - A riqueza da Europa. Tornar viva a Convenção da UNESCO", co-organizada pela Comissão alemã para a Unesco e pelo GERM, no quadro da Presidência alemã do Conselho da UE em 2007 (26 - 28 Abril 2007, Essen, Capital Europeia da Cultura Ruhr 2010).