Em dois anos no exercício do mandato de vice-governador do Rio Grande do Sul, Miguel Rossetto deixou o Brasil por apenas três vezes. Numa delas, foi ao Uruguai assistir à posse do prefeito de Montevidéu, Tabaré Vasquez. Nas outras duas, viajou com o objetivo de divulgar o Fórum Social Mundial. Esse fato demonstra a importância dada pelo vice-governador ao encontro deste mês em Porto Alegre. A escolha do Estado para sediar o Fórum se explica, segundo ele, pela oposição geográfica a Davos, Suíça (sede do Fórum Econômico Mundial) e principalmente pela notoriedade internacional das experiências administrativas do PT (Partido dos Trabalhadores) gaúcho junto à esquerda mundial.
Na sexta-feira, 5 de janeiro, Rossetto concedeu entrevista a Zero Hora em seu gabinete, no Palácio Piratini, sobre os objetivos do Fórum.
Zero Hora - Num chiste judaico sobre a convicção de que o povo de Israel seria o escolhido por Deus, um judeu pergunta: "Mas logo nós?". Se um porto-alegrense fizesse a mesma pergunta diante da eleição de Porto Alegre como capital mundial do movimento antiliberal, o que o senhor diria?
Miguel Rossetto - Eu diria: que bom que somos nós. O povo de Porto Alegre conhece, vive e tem orgulho de sua experiência de afirmação da cidadania.
ZH - Que experiências locais podem servir de modelo ao movimento antiliberal no resto do mundo?
Rossetto - A grande experiência é a da participação popular como instrumento articulador do controle social da gestão pública e da preservação e afirmação de direitos sociais. Um dos instrumentos do modelo neoliberal é a desconstituição da estrutura pública.
ZH - Em países com tradição democrática e de organização popular, como os da Europa Ocidental, esse modelo tem algo a acrescentar?
Rossetto - Esse modelo constitui uma referência nova hoje para a França, a Espanha e regiões da Itália e da América Latina, ao incorporar valores da democracia direta e participativa ao processo da democracia representativa.
ZH - Que países e cidades implementam políticas similares?
Rossetto - Há experiências positivas de gestão em províncias na India, na Coréia e em municípios na Espanha, na França, na Argentina e no México, entre outras. Esperamos que essas experiências estejam representadas no Fórum.
ZH - Cuba faz parte desse leque?
Rossetto - Sim. Temos restrições ou avaliações sobre o processo político de Cuba, mas há respeito e solidariedade à experiência do povo cubano, que ousou romper com a condição de prostíbulo americano e constrói com dignidade e coragem uma nação solidária, com justiça e qualidade de vida. Cuba, Venezuela, experiências do campo social-democrata, Africa do Sul, com suas contradições e avanços, exigem acompanhamento por aqueles que querem construir novos projetos nacionais e regionais.
ZH - É casual a ausência de representantes do governo e do Partido Comunista de Cuba na lista de presenças confirmadas ao Fórum?
Rossetto - Esperamos que Cuba tenha uma representação política importante, mas o corte programático do encontro vai além da idéia de estatização. A convocação do Fórum é definida por dois parâmetros: a crítica e o combate à globalização totalitária e excludente e a afirmação da democracia.
ZH - Na sua opinião, a democracia é um valor imprescindível na crítica ao neoliberalismo?
Rossetto - Claro. O neoliberalismo carrega em si uma desconstituição da democracia. O crescimento do autoritarismo na América Latina acompanha a hegemonia neoliberal. Para o neoliberalismo, a questão democrática é marginal e acessória. O melhor exemplo é a ditadura chilena. Os processos regressivos no Peru e as medidas provisórias e restrições federativas no Brasil indicam que a democracia sofre um processo de asfixia permanente.
ZH - Isso significa que se pode esperar críticas a eventuais representantes dos governos de Cuba e da Venezuela no Fórum?
Rossetto - Claro. A amplitude dos cortes programáticos do Fórum permitirá isso. Mas a agenda do debate político hoje não é mais o Muro de Berlim, e sim os muros levantados pelo neoliberalismo. As promessas feitas há 30 anos por esse pensamento - prosperidade, justiça, democracia, inclusão social e preservação ambiental - se revelaram grandes mentiras. A agenda daqueles que têm compromisso com a humanidade é a da superação da barbárie capitalista.
ZH - O Rio Grande do Sul tem problemas sociais graves, como a existência de 300 meninos de rua na Capital, segundo a prefeitura. Isso será discutido no Fórum?
Rossetto - O Rio Grande do Sul não é uma ilha. Os governos do PT e da Frente Popular nunca esconderam qualquer elemento da realidade. A verdade faz parte da construção da nova sociedade que queremos. Portanto, são verdadeiros e dramáticos os problemas, mas o tema do Fórum é o compromisso de superação desses problemas, que tem resultados positivos no Estado.
ZH - O Banco Mundial, que o Manifesto do Fórum define como um dos condutores da "política devastadora da globalização", é também um dos poucos financiadores de novos projetos da prefeitura e do governo do Estado. A realização do Fórum na Capital pode comprometer as relações com o banco?
Rossetto - Claro que não. A prefeitura e o governo do Estado estabelecem de forma autônoma e soberana relações com esses organismos, que dispõem de linhas de crédito para programas. O que se discute é a orientação hegemônica da Organização Mundial de Comércio (OMC), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que têm uma brutal capacidade de imposição de políticas que infelizmente são assumidas pelas elites nacionais. Essas instituições não têm nenhuma relação de controle democrático ou social.
ZH - O Fórum vai divulgar uma declaração política final?
Rossetto - É uma idéia que estamos construindo. As conclusões do Fórum vão guardar muito a idéia de programa máximo, amplo. Temos de buscar um equilíbrio entre programa mínimo e máximo. Isso significa reconhecer pluralidades e buscar um grau de organicidade maior entre os participantes. Sairemos do Fórum com compromissos maiores e mais unificados.
Por Luiz Antônio Araújo