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Date :  2005-10-07
langue :  Portugais
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Aliança de civilizações

Aliança de civilizações

Source :  Reyes Mate


O Parlamento das Religiões do Mundo, no manifesto Princípios de uma ética mundial, firmado em Chicago em 1993, entendeu que havia chegado a hora de desenhar uma estratégia comum para fazer face aos grandes problemas do mundo. Pensavam que uma vez alcançado um acordo de mínimos éticos, entre eles, poderiam enfrentar a pobreza crescente, a fome, crianças que são assassinadas e assassinam, corrupção política, saque do planeta, crime organizado, conflitos étnicos etc. Agora que tanto se fala da Aliança de Civilizações, não seria nada mal dar uma olhada no destino desse colossal e benemérito precedente.

À primeira vista os objetivos são diferentes. Agora o que preocupa é o terrorismo e há dez anos o que se queria combater eram as chagas sociais. Mas tampouco a violência estava ausente em Chicago. Os quatro princípios que devem servir de marco para essa ética de mínimos fazem referência a ela. Fala-se, é verdade, da não-violência e do respeito à vida; da solidariedade de uma ordem econômica justa; da tolerância e de uma vida vivida com verdade; da igualdade de direitos e da irmandade entre homem e mulher. Se o projeto Aliança de Civilizações quer aprofundar as causas do terror, estas vão se somar com esses problemas sociais, e se buscará uma resposta que não será muito diferente da que já foi dada.

Sempre se poderá dizer que a ética não tem exércitos para sancionar o cumprimento de seus imperativos. O fato de que foram os Estados e não as religiões os sujeitos dos novos compromissos poderia levar a pensar que agora sim seu cumprimento está garantido. Mas neste tipo de coisas o definitivo é a conduta dos cidadãos. Por isso se deve perguntar o que se deve fazer para que os acordos adotados entrem na conduta diária dos cidadãos. A pergunta que se deve fazer é esta: por que a ética de mínimos, pactuada por tradições ou instituições de grande envergadura moral, tem sido impotente diante dos perigos que ameaçam o homem e diante das chagas que dilaceram o mundo?

Talvez se tenha que buscar a resposta na própria cultura ocidental, nos males que se aninham em seus princípios fundadores. Refiro-me ao que poderíamos chamar “o mal ocidental” em sua versão moderna, um mal certamente ocidental apesar de ter sido construído por representantes do budismo, do hinduísmo, do islamismo ou do taoísmo, certamente orientais. Em sua versão antiga, felizmente superada pelo texto de Chicago, o mal ocidental identificava universalidade com ocidentalização. A Europa esgrimia uma superioridade sobre as demais civilizações porque pensava que encabeçava a corrida para a conquista do progresso.

A versão atualizada desse mal ocidental é muito mais sutil. Consiste na trivialização do passado. A Europa cunhou no século das luzes uma fórmula para resolver conflitos à qual ela não parece disposta a renunciar. Para as mentes mais lúcidas daquele tempo, como era a de Rousseau, não escapou o detalhe de que as desigualdades de seu tempo não eram produto da fatalidade ou da natureza, mas o resultado da ação do homem, ou seja, eram injustiças. Era preciso remediá-las e não lhes ocorreu outra coisa a não ser declarar que todos os habitantes do país são iguais. Por dispor do mesmo poder, todos podem decidir o destino coletivo. Todos os cidadãos são ao mesmo tempo súditos e legisladores. Estavam oferecendo aos desiguais a democracia ao preço, isso sim, de que não resolveram o passado e esqueceram-se das causas das desigualdades presentes. Estava-se oferecendo uma fórmula política de incalculáveis conseqüências, pois se trocava justiça por liberdade. Para assegurar a convivência no futuro era preciso renunciar à justiça ou à memória, que no caso era a mesma coisa. Este modo de proceder é o do manifesto que teima em pactuar princípios entre os herdeiros das fortunas e os dos infortúnios, ao invés de abrir o expediente das responsabilidades.

Quem saiu beneficiado da operação pode esquecer, mas não a vítima. Os modernos estudos sobre Estados coloniais ilustram o abismo que separa povos que até outro dia viviam em estreita relação. Para a França, por exemplo, o árabe não era um selvagem, mas algo infinitamente pior, um bárbaro. O selvagem vive submetido a instintos primários, enquanto que o bárbaro está manietado por uma religião que perverte a natureza, a razão e a vontade. O bárbaro do árabe se concretiza em seu fanatismo, determinado por sua crença islâmica que potencializa os piores instintos do selvagem. Nada cabe esperar de um árabe de cultura islâmica. Montesquieu ousou elevar a lei sociológica o resultado de suas averiguações: “que o governo moderado concerne melhor a religião cristã e o governo despótico a maometana”. Como nada de bom se pode esperar de um selvagem, o melhor é tomar a dianteira, ou seja, dado que a barbárie islâmica representa uma ameaça constante para a civilização cristã/ocidental, “tudo está permitido já que não deixam outra alternativa senão a de destruí-los ou ser destruídos por eles”.

Pretender agora que os povos que sofreram a violência resultante da visão do mundo que os ocupantes tinham deles, o esqueçam em nome de uma aliança de civilizações, é uma ingenuidade. Qualquer estratégia teórica ou prática de uma aliança entre civilizações será um inócuo acordo entre as elites das distintas civilizações, se a aliança não for centrada na aceitação de responsabilidades. Esse é o ponto fundamental. Com isto, nem tudo está dito. É preciso recordar que ainda que o espírito dominante da modernidade européia esteja marcado pela síndrome da ocidentalização (que confunde com universalidade) e do esquecimento (porque o que importa é o futuro), também possui, apesar de usá-la pouco, uma cultura da responsabilidade que não se resolve em consensos ou mínimos.

Todorov se refere a ela quando, a propósito da conquista da América, observa que a vantagem dos espanhóis sobre os indígenas consistiu em que os conquistadores puderam interpretar o sistema organizativo dos indígenas como diferente, enquanto que estes julgaram os recém-chegados a partir de seus próprios conceitos. O ocidental podia distanciar-se de sua própria cultura e observar a outra em sua diferença. Os conquistadores puderam medir o outro sistema, julgá-lo em seu conjunto e compará-lo com o seu próprio, enquanto que os indígenas colocaram a novidade em um nicho do próprio sistema, o reservado aos semi-deuses. Essa capacidade cultural de ver o outro em sua diferença – embora no caso analisado por Todorov ela seja utilizada em função do domínio e não do reconhecimento – abre as portas para um reconhecimento do sofrimento do outro que não apela para o consenso ou para a aliança, mas para a responsabilidade. A Europa, além de ter uma cultura do olho que a tudo vê como projeção de si mesmo, tem outra do ouvido na qual é a escuta que dispara o conhecimento e a ação.

Tudo isto nos leva à conclusão de que a aliança de civilizações pode ser proposta a partir de uma cultura do consenso ou de uma outra da responsabilidade. No primeiro caso, se ela é bem sucedida, serão satisfeitas as elites das civilizações; teremos um novo manifesto, apresentado com muito barulho, mas de eficácia duvidosa; no segundo, seriam acentuadas as dívidas pendentes que as gerações atuais têm entre si, devido ao passado. A melhor prova de que no futuro se quer fazer as coisas bem feitas, é reconhecer que no passado elas foram mal feitas. E esse reconhecimento se traduz em responsabilidade. Não estaríamos enganados se interpretássemos todo o ódio atual como resultado do sofrimento causado pelo passado de opressão em qualquer de suas versões. Nós o esquecemos, mas não eles.



Tradução: Giselle Dupin


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