Ref. :  000001849
Date :  2001-09-18
Language :  Portuguese
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Direito de ingerência

Direito de ingerência

Author :  Tanella Boni


Cada ser humano possui em si mesmo um princípio de autonomia e de conservação da vida. Tirar-lhe esse princípio seria interromper um processo natural, intervir numa ordem necessária à perpetuação da espécie. Acaso se tem o direito de imiscuir-se no curso natural da vida? Os debates atuais sobre a clonagem humana, bem como sobre a eutanásia, inserem-se nesse contexto. A pesquisa científica não seria o primeiro campo ao qual se aplica um direito de ingerência? É por isto que se fala de ética nessa área: a experimentação empurra os limites da ignorância, pode trazer mais bem-estar ao homem e prolongar a vida. Mas, tendo como objetivo um bem inestimável, pode-se também provocar males de conseqüências incalculáveis para a humanidade...

É neste momento, diante de situações de extrema gravidade, que se pensa no outro protetor, em alguns indivíduos admiráveis que parecem investidos de uma nobre missão: proteger os direitos humanos, tornar a terra habitável. Dentre eles, citaremos Sócrates, o primeiro "ingerente" nos assuntos do homem, ou o prelado espanhol Bartolomeu de Las Casas (1474-1566) que, contra os conquistadores espanhóis no México, defendeu os Índios e sua humanidade. E ainda, no século XX, aqueles que defenderam e ilustraram a não-violência, tais como o Mahatma Gandhi (1869-1948), Martin Luther King (1929-1969), prêmio Nobel da Paz, ou ainda Madre Tereza. Mas, a propósito desses "guardiões do Bem", pode-se falar de "direito de ingerência" quando eles percorrem toda a extensão de sua cidade, do seu país, do Planeta? Quando eles vão socorrer os deserdados? É evidente que não! É como se socorrer, reconfortar, agir pela paz e pela não-violência, fazer com que a humanidade se torne mais humana, fosse apenas seu dever de homem ou de mulher.

Entretanto, depois da segunda guerra mundial, outros "guardiões" assumiram o posto, em forma de instituições internacionais que desempenham um papel econômico, político, diplomático, militar ou humanitário em escala mundial. Atualmente, nenhum país pode pretender estar realmente sozinho ou isolado no mundo. O mundo é um todo organizado, uma ordem que comporta partes desiguais. Mas a liberdade de ação de cada uma das partes não termina lá onde começa a dos outros? De que modo as leis do todo se aplicam às partes? E será que esse todo se limita ao Ocidente que governa o mundo? O Ocidente teria o direito de matar para proteger os direitos humanos em certas regiões do mundo? É assim que se poderia formular, de modo extremo, o direito de ingerência. Por exemplo, em 2000, "lugares estratégicos" foram bombardeados, infra-estruturas foram destruídas para enfraquecer o regime de Belgrado e fazer Slobodan Milosevic cair. As populações sofreram as graves conseqüências dessa "agressão externa", e o ditador de Belgrado resistiu até que um movimento popular o afastasse do poder.

Num primeiro momento, a "vontade de ordenamento" da Europa e dos Estados-Unidos parece ter falhado. Mas houve um segundo ato, e Milosevic foi extraditado. Um processo judicial em escala internacional está em curso. Este exemplo indica que atualmente a vontade de ordenar o caos não diz respeito necessariamente a um desejo de conquista ou de expansão, mas também pode corresponder a um "direito" de vigiar e punir todos os culpados de crimes contra a humanidade, e também o não-respeito dos direitos fundamentais, imprescritíveis por definição, como o direito à vida, à liberdade de pensamento e de expressão, à educação.

Entretanto, os "vigias do mundo" não vêm todos os crimes cometidos, e às vezes até os deixam acontecer - como em Ruanda, em 1994. As grandes potências protegem ditadores porque existem interesses a defender, zonas de influência a preservar. Também pode acontecer que a intervenção externa apoie as razões do Estado contra o respeito da dignidade humana. Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948, "ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações", como diz seu preâmbulo, as armas continuam a ser vendidas e compradas. Em alguns países - podemos citar o sudeste da Nigéria, mas também o Congo e Angola -, a exploração do petróleo pelas empresas multinacionais polui gravemente o meio ambiente, empobrece as populações, lhes retira terras cultiváveis... Isso não seria um outro tipo de "direito de ingerência"? Um direito paradoxal que às vezes pretende salvar a vida e os direitos fundamentais dos indivíduos e dos cidadãos, mas que, freqüentemente, destrói os locais de vida, desorganiza regiões inteiras, impõe suas próprias leis em nome de interesses econômicos ou de "valores" colocados acima da humanidade.


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