Antes mesmo da realização da Cúpula do G8 em Gênova (julho de 2001), sua problemática tinha-se deslocado, apesar dos seus grandes dignatários, dos seus esforços e de suas denegações. Nos próprios quadros-de-aviso onde estava inscrita uma agenda normativa, um novo "programa" surgiu, dissimulando o antigo.
A nova ordem-do-dia de Gênova tornou-se, para os dirigentes do primeiro mundo, uma questão que se pode resumir do seguinte modo: como caminhar junto com a "sociedade civil" (1)? Como não se deixar submergir pelo seu fluxo? Como controlar a febre sem suscitar em resposta terríveis acessos de violência?
Na verdade, não se pode compreender inteiramente a importância adquirida em poucos anos pela "sociedade civil" nas relações internacionais e no conjunto do debate político, sem correlacioná-la com a importância da crise da "democracia representativa" nos Estados-nação. De fato, as ONG, os "movimentos alternativos", os "fóruns (de) cidadãos" não são apenas uma expressão da "modernidade", a conseqüência dos meios originais de informação e de comunicação que ela domesticou. Eles não são os filhos das "novas tecnologias", especialmente da Internet, que algumas pessoas desejam ver neles, para se tranqüilizarem. No fundo, essas figuras da sociedade civil nascem, crescem e se multiplicam para estimatizar e servir de paliativo às insufiências de uma democracia que não avança suficientemente depressa, aos olhos dos cidadãos, e no seio da qual a persistência das práticas oligárquicas torna-se cada dia mais inaceitável.
Inútil invocar, como fez o Primeiro ministro canadense no Quebec, em abril de 2001, a legitimidade conferida pelo voto aos governantes, para desqualificar a das ONG que "representariam apenas a si mesmas", quando não se governa, realmente, de um modo aberto à contradição, à proposição, enfim, à deliberação realizada num clima de liberdade e de eqüidade. O voto democrático e majoritário de um dia não dá, aos governos, democracias auto-satisfeitas cuja gestão é aprovada por antecedência: esta última deve ser sempre adaptada e justificada diante daqueles que a concederam. O voto não exonera o governo de uma prática democrática cotidiana no exercício efetivo do poder que se segue à eleição. Prática democrática que, não apenas se esforça em considerar a diversidade das opiniões que ela deve representar, mas que também deve ficar atenta à evolução dessas opiniões, que ela não pode tentar imobilizar por comodidade.
Mais adiante, o debate sobre a legimitidade da sociedade civil e de suas organizações para intervir nos processos políticos nacionais e transnacionais (G7, 8, 20, Banco Mundial, FMI, OMC...) é um combate ultrapassado. Na verdade, tudo prova, atualmente, que não se pode deixar aos dirigentes eleitos a exclusividade da decisão política. Nem que seja porque, na prática, os dirigentes não eleitos de organismos multilaterais tomam muitas decisões políticas essenciais motivadas por critérios políticos. Quanto aos "eleitos democráticos", a invalidação do protocolo de Kyoto pelo presidente Bush e a fraqueza da reação que essa rejeição suscitou entre seus pares - acima dos protestos e apesar da gravidade excepcional do assunto -, provam que só se pode conceder um mandato limitado a responsáveis cada vez mais ultrapassados pela "amplitude e complexidade das suas missões" (desculpa invocada por eles mesmos), e isso quando eles não se mostram irresponsáveis. Por este motivo, a questão da legitimidade se dissipa em benefício da questão das modalidades do diálogo que deveria ser alimentado, por um dado, por atores políticos e administrativos tradicionais, e por outro lado, por atores políticos e "civis" não normativos. E também a questão da partilha, do "equilíbrio dos poderes" que se trata de forjar tendo em vista a elaboração do mundo do futuro. A questão não é mais saber se os atores da sociedade civil devem desempenhar um papel político eminente, mas como e a partir de que direitos e deveres.
Nessa perspectiva, faço uma proposta, tão simples em seu princípio quanto complexa em sua implementação, que vai de encontro, é claro, a numerosas objeções, mas que deveria ser examinada, se não promovida, com a vontade necessária. Esta proposta é de proceder o mais breve possível à criação de uma Organização da sociedade civil internacional. Esta OSCI teria no mínimo três vocações.
A primeira, recolher e cuidar da soma excepcional de trabalhos continuamente realizados por diferentes atores (independentes ou institucionais) da "sociedade civil": análises críticas, estudos qualitativos e quantitativos, e proposições.
A segunda, tornar acessíveis essas contribuições de natureza diversa, ao maior número possível de cidadãos, e, especialmente, torná-los conhecidos dos responsáveis políticos, econômicos, sociais, educativos, científicos e culturais.
A terceira, discutir e negociar diretamente, por um lado com os governos, por outro lado com os organismos multilaterais (tanto com a OMC, a OMPI e o FMI quanto com o Banco mundial), a respeito de todas as grandes questões que dizem respeito ao futuro da Humanidade (políticas do meio ambiente, da energia, da saúde, da educação, organização do comércio internacional, diversidade cultural, direitos de propriedade intelectual, controle da especulação financeira, das vendas de armas, do crime organizado...) - e isto com um poder de decisão, ou até mesmo de obrigação, a definir.
A representatividade da OSCI deveria ser reconhecida por todos os Estados membros e instituições do sistema das Nações Unidas, bem como pelas outras instituições multilaterais regionais. Esta representatividade lhe daria todos os poderes de investigação e de difusão dos seus trabalhos, no que diz respeito à execução das suas missões. Por outro lado, a OSCI seria convidada pela ONU, pelas outras instituições multilaterais, pelos governos, pela União Européia, a participar dos trabalhos relativos ao campo das suas missões.
Aos olhos de alguns, esta OSCI seria no máximo uma maneira bastante perversa de "instrumentalizar a sociedade civil", incluindo-a no círculo do debate e dos processos de decisão normativos existentes, com tudo o que eles têm de esclerozado e de oligárquico. Trata-se claramente de um risco, que não poderíamos ignorar. Mas as ONG dispõem de um capital coletivo de experiências e de memória dos desfuncionamentos do "sistema internacional" suficientemente grande para evitar sua reprodução idêntica dentro de uma organização que elas contribuiriam a criar.
Seja como for, as modalidades atuais do "debate" governos-sociedade civil na cena internacional não são sustentáveis, mesmo a curto prazo. Torna-se urgente mudar de perspectiva, de meios de comunicação e de trocas, ou seja, de relações políticas.
Nota:
(1) Ver neste dicionário o artigo "Sociedade civil" de Georges Navet.